A conversão verdadeira
Como saber afinal se uma pessoa realmente se converteu? Uma reflexão sobre a fé exterior e a interior
Quando viu muitos fariseus e saduceus vindo para o batismo, João disse-lhes: “Raça de cobras venenosas, quem vos ensinou a fugir da ira que vai chegar? Produzi frutos que provem a vossa conversão. Não penseis que basta dizer: 'Abraão é nosso pai', porque eu vos digo: até mesmo destas pedras Deus pode fazer nascer filhos de Abraão.” (Mateus 3, 7-9)
A liturgia do período do Advento tem dois personagens centrais: João Batista e Maria, a mãe de Jesus. Na pessoa de João, que aparece neste segundo domingo e no próximo, refletimos sobre a nossa conversão, necessária para nos prepararmos para a vinda de Cristo.
E o evangelho deste domingo traz um alerta curioso. João Batista está nas margens do rio Jordão, pregando a conversão dos pecadores e batizando. Aproximam-se, buscando o batismo, fariseus e saduceus. E, imediatamente, João os acusa de não serem sinceros em sua procura. Mas, afinal, como julgar isso?
Fariseus e saduceus
Primeiro de tudo, precisamos entender quem são os fariseus e saduceus. Tratam-se de dois grupos religiosos importantes do judaísmo do tempo de Jesus. De certa forma, eles representam dois modos formais de se viver uma religião.
Fariseu vem do hebraico hassidim, que significa “piedosos”. Eles surgem no século II antes de Cristo. Na época, Israel estava sob domínio do Império Selêucida, um dos herdeiros de Alexandre o Grande, e o rei Antíoco IV Epífanes promoveu uma ofensiva contra a religiosidade judaica. Ele chegou a instalar estátuas de Zeus no Templo de Jerusalém. Os fariseus são um dos grupos que se erguem à época em defesa do judaísmo.
Os saduceus também surgem por essa época, mas com um viés diferente. O seu nome deriva de Sadoc, sumo sacerdote nomeado pelo rei Salomão, e que se tornou o patriarca de uma estirpe nobre de sacerdotes judeus. Os saduceus, portanto, se reivindicavam como membros de uma elite sacerdotal especial.
Fariseus e saduceus apresentavam profundas diferenças teológicas, mas o que nos importa aqui é a forma como cada grupo vivia a sua fé na prática.
Os fariseus se destacavam pelo rigor ortodoxo com o que viviam as normas e preceitos do judaísmo. Eles eram profundos estudiosos da Torá, e procuravam viver à risca os seus preceitos. A maior parte dos rabinos da época de Jesus eram fariseus, e eles moldaram o judaísmo moderno a partir das sinagogas.
Já os saduceus viviam uma religião de legitimação. Eles não eram tão rigorosos como os fariseus. O seu destaque era no poder político, e a condução da parte institucional da religião. O caráter sacerdotal e nobre do grupo era um símbolo de status e distinção social.
Os fariseus eram os integristas da fé. Os saduceus uma nobreza religiosa. Cada um, à sua maneira, eram uma espécie de tipo ideal de duas formas diferentes, complementares e não mutuamente excludentes de se viver uma fé exterior.
A fé exterior e a interior
Em seu conto “O Espelho”, Machado de Assis desenvolve a ideia de que toda pessoa tem duas almas: a alma exterior e a interior.
Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro... Espantem-se à vontade; podem ficar de boca aberta, dar de ombros, tudo; não admito réplica. Se me replicarem, acabo o charuto e vou dormir. A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; – e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor, etc. Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira. Shylock, por exemplo. A alma exterior daquele judeu eram os seus ducados; perdê-los equivalia a morrer. "Nunca mais verei o meu ouro, diz ele a Tubal; é um punhal que me enterras no coração." Vejam bem esta frase; a perda dos ducados, alma exterior, era a morte para ele.
No desenvolvimento do conto, Machado apresenta a história de um alferes que só se via como um ser humano completo com a sua farda. Na história que conta, a definição acima fica mais clara: a alma interior é a essência do homem, e a alma exterior é a sua aparência pública.
Desenvolvendo a partir do conceito de Machado de Assis, podemos desdobrar duas formas de se viver a fè: a fé interior, aquele vivida no coração, ao qual apenas Deus tem acesso, e a fé exterior, aquela manifesta ao público.
A fé exterior pode ser uma forma bastante útil de emular uma fé interior. Na ausência de uma vida interior verdadeiramente cultivada, pode-se criar uma aparência de espiritualidade por meio de comportamentos sociais que sirvam como indicadores para o público de que a pessoa é alguém de Deus.
Claro, uma fé exterior, vivida com sinceridade, pode mover a pessoa a crescer em sua fé interior. Práticas devocionais, estudo, a frequência a liturgia, ajudam a reforçar no coração da pessoa o seu amor verdadeiro por Jesus. Contudo, a chave está na palavra “sinceridade”. Uma fé exterior pode ser alimentada apenas para dar ao distinto público a aparência de vida interior profunda. E é aí que mora o perigo.
A fé exterior dos fariseus e dos saduceus
Nas figuras dos fariseus e saduceus, vemos dois modos bastante comuns de emulação de uma vida interior. Um deles é a aparência de rigor teológico, baseado em mecanismos retóricos que alimentam a “cara de inteligente” de quem fala. O outro é o sucesso social tomado como indício de vida espiritual.
A fé exterior dos fariseus: a superficialidade com cara de inteligente
Os fariseus eram estudiosos profundos das Escrituras. Mas nos evangelhos aparece de forma recorrente a denúncia de que não viviam a fé que pregavam:
Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! Pois que limpais o exterior do copo e do prato, mas o interior está cheio de rapina e de iniquidade. Fariseu cego! Limpa primeiro o interior do copo e do prato, para que também o exterior fique limpo.
Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! Pois que sois semelhantes aos sepulcros caiados, que por fora realmente parecem formosos, mas interiormente estão cheios de ossos de mortos e de toda imundícia. Assim, também vós exteriormente pareceis justos aos homens, mas interiormente estais cheios de hipocrisia e de iniquidade.
Mateus 23, 25-28
Vemos muitas vezes esta manifestação de fé exterior como uma espécie de caga regra do sagrado. O sujeito vive a procurar defeito na forma com que os outros experimentam a sua fé.
Tem o tipo moralista, cujo hábito é denunciar a perversão moral dos outros cristãos. “Fulano é abortista”, ou “Beltrano é pedófilo”. Especialmente no tema da moral sexual e reprodutiva. Acusar alguém de ser inimigo da família, ou de promover a ideologia de gênero, tem sido um recurso fácil.
Tem o tipo dogmático. Este gosta de acusar as “interferências modernistas” na doutrina deste ou daquele. Especialmente do marxismo. Vêem sinais de marxismo em tudo que se move.
E tem o tipo litúrgico, cujo prazer é apontar que tal ou qual rito não segue exatamente as rubricas do missal. Tal padre corta a hóstia na hora errada, ou tal comunidade toca bateria na liturgia. Música litúrgica correta é apenas a gregoriana (afinal, todos sabem que os doze apóstolos eram uma orquestra, e Natanael inclusive tocava violinos - sim, isso é sarcasmo).
E é interessante porque a denúncia é um dos deveres proféticos. E muitos santos se destacaram pelas suas denúncias. Mas, afinal, como diferenciar a mera implicância da denúncia real?
A fé exterior dos saduceus
Os saduceus, por sua vez, não estavam preocupados com o rigor teológico. Neste caso, o sinal da predileção de Deus está nas recompensas neste mundo. Aqui, o foco é demonstrar a realização da promessa do Deuteronômio: “ser feliz e ter vida longa na terra” (Deuteronômio 5,16).
Em tempos de teologia da prosperidade e lei da atração, muitos religiosos e fiéis assumem os papeis de coach. Promovem a ideia de que uma alma em conexão íntima com o sagrado manifesta uma prosperidade material palpável. E, veja, isso não é exclusividade dos cristãos. Vários buscam essa legitimação nas espiritualidades orientais.
E isso também é interessante, porque as graças materiais são sim uma promessa de Deus. Jesus mesmo prometeu que quem abandonasse tudo por ele recebeia “cem vezes mais nessa vida” e a vida eterna (Marcos 10,30). Mas, um detalhe: receberia isso “com tribulações”.
Sinais da verdadeira fé interior
Como discernir então qual a verdadeira fé interior. Para entender isso, vamos mergulhar no livro O Diálogo, de Santa Catarina de Sena, no qual ela trava uma conversa com Deus a respeito da salvação das almas.
O primeiro alerta de Deus a Santa Catarina é evitar três atitudes que poderiam “estimular a presunção”, ou seja, aquela atitude inquisitiva típíca da fé exterior do fariseu:
Não corrigir o próximo: Deus pede que, quando virmos o defeito de alguém, não façamos a correção personalizada, mas sim uma orientação geral, com foco na atitude errada, e não na pessoa que o comete. Pede ainda que, antes de corrigir os outros, examinemos se esse defeito está presente em nós mesmos, para assim nos corrigirmos.
Não julgar o interior do homem: Deus avisa que nem todo mundo que aparece estar afastado de Deus realmente está nesta situação. Apenas Ele sabe o que se passa no interior da pessoa, e o nosso julgamento pode ser então injusto e inadequado. Por isso, quando encontrar alguém que parece estar frágil na sua fé, o dever do cristão é acolher a pessoa, e não dar palpite.
Respeitar a espiritualidade alheia: a verdadeira espiritualidade está no amor verdadeiro da alma por Deus, e esse amor se manifesta das mais diferentes formas. Por isso, julgar que um grupo canta e dança nas missas, e outro rexza em latim, e um estaria mais ou menos certo que o outro, é uma atitude de idiota, de alguém que come a grama do próprio quintal. Cada alma e cada grupo de almas encontra o próprio caminho para Deus.
Então, portanto, veja que a fé interior verdadeira se volta para si mesma. Ela é rigorosa consigo próprio, porque busca uma relação cada vez mais próxima com Deus, mas é leve com os demais. Reconhece em cada alma o seu próprio caminho para o Sagrado, muitas vezes fora das Igrejas, e quando identifica um comportamento errado, seu foco está na denúncia do pecado, e não do pecador.
Deus afirma a Santa Catarina que os sinais de amor perfeito, que a alma deve procurar em si mesma, são:
Efusão do Espírito Santo: a alma se enche de coragem para fazer a Vontade de Deus, e comprar as brigas que precisar para seguir o seu caminho;
Compreensão da Caridade de Cristo: ela consegue reconhecer o amor misericordioso de Deus por toda a humanidade, sem nenhum tipo de segregação ou exclusivismo;
Impulso ao apostolado na paciência: não há pressa, a pessoa encara as dificuldades, cai e se levanta, persevera, retoma de onde parou, insiste, aprende, corrige rumos, e retoma mais uma e outra vez.
Neste segundo domingo do Advento, peçamos a Nossa Senhora, mãe e a melhor professora de espiritualidade, que nos ajude a intensificar a nossa fé interior, evitando que nossa fé exterior seja uma mera simulação da presença de Deus, mas sim a expressão real da presença de Deus em nossa vida.
Viva a plena Liberdade de se amar a Deus! Se você ainda está preso às regras bisonhas de saduceus e fariseus contemporâneos, rompa essas algemas e siga em frente. Nem vai doer muito. Deus quer você, não eles! Afinal de contas, você sabe o que é o perdão, eles não. Eles só pensam em dinheiro. E você pensa que é tarde? Não, nunca é tarde para se amar verdadeiramente a Deus. Libertas quae sera tamen.