Ainda temos que esperar Jesus?
Na pergunta de João Batista, vemos como é difícil perceber que o Senhor está no meio de nós. Afinal, a incerteza e a dúvida faz parte da espiritualidade verdadeira.
João estava na prisão. Quando ouviu falar das obras de Cristo, enviou-lhe alguns discípulos, para lhe perguntarem: “És tu, aquele que há de vir, ou devemos esperar um outro?”
Mateus 11,2-3
A falsa espiritualidade, a espiritualidade emulada, gosta de emanar certezas. A verdadeira espiritualidade, pelo contrário, é toda imersa em dúvidas. A incerteza, e a consciência desta incerteza, é parte fundamental da jornada da pessoa rumo à sua iluminação, rumo à intimidade com Deus.
Na reflexão do evangelho deste domingo, vamos mergulhar fundo nas reflexões de Bento XVI a respeito da relação entre a fé e a incerteza. Principalmente porque o papa teólogo fala sobre isso em uma homilia a respeito deste episódio da vida de João Batista, quando ele pergunta a Jesus se Ele é “aquele que há de vir”.
E para começar, citamos o capítulo de Introdução ao Cristianismo no qual ele fala da relação entre a fé e a dúvida. Neste texto, Bento XVI se refere a uma cena da peça “O Sapato de Cetim”, de Paul Claudel, na qual um missionário jesuíta se vê náufrago, perdido no mar, segurando em um pedaço de madeira do navio. Ali, o personagem identifica aquele pedaço de madeira como a cruz de Cristo, à qual ele se prende para não se afogar. Diz o papa:
Atado à cruz, mas a cruz não está presa a nada e está flutuando sobre o abismo. Dificilmente se encontraria uma imagem mais precisa e instigante para a situação do fiel cristão nos dias de hoje.
Para Paul Claudel, a cruz de Cristo era a segurança do fiel diante da incerteza do mundo. Papa o papa, ela mesma está imersa na incerteza, fazendo das dúvidas parte fundamental da fé que mantém o fiel preso à sua cruz.
E aí vamos a João Batista
O testemunho de João Batista
Nesta altura do evangelho de Mateus João Batista se encontra preso por ordem de Herodes. A qualquer momento, sua cabeça será cortada para ser entregue de presente a uma criança, em uma festa cruel.
E ele estava preso por conta de seu testemunho, que em grego se diz martyrion. O seu martírio seria absoluto, seria levado às últimas consequências. A sua morte seria o resultado final de sua fidelidade ao testemunho. Como diz René Girard em O Bode Expiatório:
João Batista é para Herodíades um escândalo pelo único fato de que ele diz a verdade, e o desejo não tem pior inimigo que a verdade. É por isso que ele pode fazer dessa verdade um escândalo; a própria verdade se torna escandalosa, e aí se encontra o pior dos escândalos. Herodes e Herodíades mantém a verdade prisioneira, fazem dela uma espécie de aposta, comprometendo-a nas danças de seu desejo. Feliz, diz Jesus, aquele para quem eu não for causa de escândalo
Vimos na semana passada como João denunciava inclusive as falsas espiritualidades, as espiritualidades emuladas dos fariseus e dos saduceus. Quando esta denúncia incomoda por apontar a hipocrisia do poder, na pessoa de Herodes, a própria vida do profeta corre risco.
E, no entanto, na hora H, bate a dúvida em João Batista. Ele anunciou um batismo de fogo, que levaria as pessoas à conversão. Seria Jesus esse que ele havia anunciado?
Em Dogma e Anúncio, Bento XVI analisa:
As trevas do cárcere não eram as mais difíceis que ele teve que suportar. As suas trevas propriamente ditas consistia naquilo que Martin Buber chama de “as trevas de Deus”, a súbita incerteza sobre a sua missão e sobre aquele ao qual tinha procurado preparar o caminho.
E a liturgia traz exatamente esse momento de dúvida para nós. Afinal, se até João Batista, o profeta que preparou o caminho para Jesus, teve dúvidas, porque nós não teríamos?
A noite escura
Faz parte da tradição mística católica a meditação sobre o que outro João, São João da Cruz, chamou de “a noite escura”. Refletindo sobre o Cântico dos Cânticos, o místico carmelita epanho, traduz em versos essa busca noturna e infrutífera da alma por Deus durante as trevas:
Em uma noite escura, De amor em vivas ânsias inflamada Oh! ditosa ventura! Saí sem ser notada, Já minha casa estando sossegada. Na escuridão, segura, Pela secreta escada, disfarçada, Oh! ditosa ventura! Na escuridão, velada, Já minha casa estando sossegada. Em noite tão ditosa, E num segredo em que ninguém me via, Nem eu olhava coisa, Sem outra luz nem guia Além da que no coração me ardia. Essa luz me guiava, Com mais clareza que a do meio-dia Aonde me esperava Quem eu bem conhecia, Em sítio onde ninguém aparecia. Oh! noite que me guiaste, Oh! noite mais amável que a alvorada Oh! noite que juntaste Amado com amada, Amada já no Amado transformada! Em meu peito florido Que, inteiro, para Ele só guardava Quedou-se adormecido, E eu, terna, O regalava, E dos cedros o leque O refrescava. Da ameia a brisa amena, Quando eu os seus cabelos afagava Com sua mão serena Em meu colo soprava, E meus sentidos todos transportava. Esquecida, quedei-me, O rosto reclinado sobre o Amado; Tudo cessou. Deixei-me, Largando meu cuidado Por entre as açucenas olvidado.
A dúvida sobre a missão, as “trevas de Deus” fazem parte da jornada da alma em busca da luz. O poema de São João da Cruz descreve exatamente essa busca, e como ela transforma a pessoa, a prepara para uma relação mais íntima com o Senhor.
Quando fala do momento de dúvida e incerteza de João Batista, Bento XVI a insere em um contexto de conversão à qual todos somos chamados:
A presença de Deus tinha começado… mas como era diferente daquilo que ele pensara! Não caia fogo do céu para devorar os pecadores, servindo de confirmação definitiva para os justos; não se mudava absoilutamente nada no mundo. Jesus passava fazendo benefícios. Permanecia a ambiguidade.
A noite escura é uma oportunidade de recolocar as coisas. De chacoalhar as certezas, para que a pessoa cresça no entendimento da sua fé, da sua vocação, e na percepção real de qual é o agir de Cristo.
O Senhor está no meio de nós
Em todas as celebrações litúrgicas, o celebrante convida “O Senhor esteja convosco”, e o público responde “ele está no meio de nós”. Os puristas, defensores de uma tradução mais literal do missal, reclamarão que a resposta original é “e com o teu espírito”, meio que devolvendo o convite ao celebrante. Mas, perdoem-me, a resposta brasileira, assim como o nosso estrogonofe, é melhor que a original.
As teologias milenaristas e suas expressões políticas esperam por um grande momento na história, o arrebatamento, no qual os justos serão levados de repente para junto de Deus. Mas não é assim que Jesus age. No Natal, ele vem como uma criança humana nascida em um estábulo em uma família pobre, que cresce na periferia do mundo, em Nazaré.
Deus está no meio de nós. E Ele age de forma sutil. Sempre foi assim. Na História da Igreja, as grandes reformas começaram pelas mãos de pessoas que surgiram dos lugares mais improváveis. Quando Bernardette descreve as visões de Nossa Senhora em Lourdes, os bons cristãos questionam porque Maria apareceria a uma analfabeta. Da mesma forma, quando Juan Diego fala do pedido da Mãe em Guadalupe, questiona-se porque Ela apareceria a um indígena. Mas é assim que Ele age,
Olhando em retrospecto, é surpreendente o impacto daquele cara de Nazaré, do pior lugar da Palestina em seu tempo, na História do mundo. Provavelmente, era esse o impacto que Herodes esperava causar. Mas ele, em todo o seu poder, foi reduzido ao papel de coadjuvante na biografia de João Batista. Ninguém mais liga para Herodes, ninguém se importa com ele, resumiu-se a uma nota de rodapé descartável, foi varrido da existência como asas de mosquito morto. Mesmo Salomé, que lhe pediu a cabeça do profeta, foi mais retratada em quadros e obras de arte desde então.
Mesmo hoje, os verdadeiros santos de nosso tempo não estão visíveis. Provavelmente as pessoas que estão nas igrejas e negam a comunhão a quem usa máscaras para se proteger da covid sequer reconheceriam esses santos se os vissem nas ruas.
E, se esse aviso vale para João Batista, vale para nós também. Provavelmente é essa a conversão que devemos fazer neste Advento.
Loucos são os que não sabem perdoar, porque deles não é o Reino dos Céus. Aos demais, a felicidade eterna! Pois a Santidade é um ato de amor, não de loucura. Maranatha!