Cristo Rei?
Os perigos da associação da fé católica com o poder ao longo da História, e porque precisamos ser rebeldes para ser fiéis
Acima dele havia um letreiro: "Este é o Rei dos Judeus."
Lucas 28, 38
Neste dia 20 de novembro, o último domingo do ano litúrgico, a Igreja comemora a festa de Cristo Rei do Universo. Por acaso, neste ano de 2022 a celebração coincide com o Dia da Consciência Negra, quando relembramos a morte de Zumbi dos Palmares. Uma coincidência que nos leva a pensar.
Afinal de contas, faz sentido celebrar um dia de Cristo Rei? Sim, muitos de vocês dirão que não estamos falando de um reino humano, não estamos falando de política afinal. Mas não precisamos ir muito longe para ver um movimento político no Brasil que diz agir em nome de Deus enquanto promove uma campanha por um golpe de estado.
As origens protofascistas da festa de Cristo Rei
E não sejamos ingenuos: o estabelecimento da cerimônia de Cristo Rei pelo Papa Pio XI na encíclica Quas Primas tem sim um fundamento político. O papa não esconde sua intenção na abertura da Encíclica:
lembra-nos haver abertamente declarado duas coisas: uma, que este aluvião de males sobre o universo provém de terem a maior parte dos homens removido, assim da vida particular como da vida pública, Jesus Cristo e sua lei sacrossanta; a outra, que baldado era esperar paz duradoura entre os povos, enquanto os indivíduos e as nações recusassem reconhecer e proclamar a Soberania de Nosso Salvador
Ao clamar, portanto, que a Igreja busque “a paz de Cristo no reino de Cristo”, Pio XI não esconde a motivação claramente política de sua iniciativa. Estamos em 1925, o mundo lida com os traumas da Primeira Guerra Mundial, com várias transformações na economia, na política e na cultura.
Diante da expansão do pensamento democrático com a queda de diversas monarquias e a instauração de Repúblicas na Europa, o papa afirma:
Cristo Jesus foi dado aos homens não só como Redentor, que lhes merece toda confiança, mas também como Legislador, a quem devemos prestar obediência (Conc. Trid., Sess. 6, can. 21). E com efeito, não dizem os Evangelhos tão só que promulgou leis, mas no-lo representam no ato de promulgar as leis. A quantos observarem os seus preceitos, declara o Divino Mestre, em várias ocasiões e de diversos modos, que com isto mesmo Lhe hão de provar o seu amor e permanecer em sua caridade (Jo 14, 15); 15, 10). Quanto ao “poder judicial”, declara o próprio Jesus havê-lo recebido de seu Pai, em resposta aos judeus, que o haviam acusado de violar o descanso do sábado, curando milagrosamente, neste dia, a um paralítico. “O Pai, disse-lhes o Salvador, não julga a ninguém, mas deu todo juízo ao Filho” (Jo 5, 22). Esse poder judicial igualmente inclui o “direito”, que se não pode dele separar, de “premiar” e “punir” aos homens, mesmo durante a vida. A Cristo compete o “poder executivo”, porquanto devem todos sujeitar-se ao seu domínio, e quem for rebelde não poderá evitar a condenação e os suplícios, que Jesus prenunciou.
Além de afirmar a realeza espiritual de Cristo, o papa reivindica também o seu poder político:
fora erro grosseiro denegar a Cristo Homem a soberania sobre as coisas temporais todas, sejam quais forem. Do Pai recebeu Jesus o mais absoluto domínio das criaturas, que Lhe permite dispor delas todas como Lhe aprouver.
E, por fim, afirma que o reconhecimento da realeza de Cristo é fundamental para “restaurar a autoridade”, estimulando os súditos a obedecerem aos seus soberanos, comparando os cidadãos aos escravos e às mulheres casadas (que no começo do século XX ainda eram desprovidas de direitos em muitas sociedades modernas)
Com dar à autoridade dos príncipes e chefes de governo certo caráter sagrado, a dignidade real de Nosso Senhor enobrece com isto mesmo os deveres e a sujeição dos cidadãos. Tanto assim que o Apóstolo S. Paulo, depois de prescrever às mulheres casadas e aos escravos de reconhecerem a Cristo na pessoa de seus maridos e senhores, lhes recomendava, ainda assim, de obedecerem não servilmente, como a homens, mas tão só em espírito de fé como a representantes de Cristo
Na Itália, desde 1922 o regime fascista de Benito Mussolini já imperava, sob o lema “Deus, Pátria e Família”. O lema recuperado pelo papa, “a paz de Cristo no reino de Cristo”, já aparece em sua primeira encíclica, Ubi Arcano Dei Consilio, publicada em dezembro daquele mesmo ano.
A fuga da política ao espiritual
Claro, depois da Segunda Guerra Mundial ficou feio reivindicar o fascismo na sociedade ocidental durante longos anos. Nas décadas que sucederam à Quas Primas, o magistério se ocupou de se afastar do conteúdo político da devoção. A Constituição Lumen Gentium, por exemplo, declarou:
Pois o Senhor deseja dilatar também por meio dos leigos o Seu reino, reino de verdade e de vida, reino de santidade e de graça, reino de justiça, de amor e de paz (114), no qual a própria criação será liberta da servidão da corrupção, alcançando a liberdade da glória dos filhos de Deus (cfr. Rom. 8,21)
Aqui o conteúdo do reinado de Cristo muda em relação à Encíclica de Pio XI. Não se trata simplesmente de reafirmar a autoridade do poder político, mas de reconhecer o Reino de Deus como serviço e meio para promover a dignidade humana.
Em 1980, na cerimônia de Cristo Rei, o papa João Paulo II medita sobre o mesmo evangelho que será lido nas missas neste ano C, de Lucas. E aponta o reino de Cristo inserido no mistério da Salvação:
A realeza de Cristo, que nasce da morte no Calvário e culmina no acontecimento dela inseparável, a ressurreição, recorda-nos aquela centralidade, que a ele compete por motivo daquilo que é e daquilo que fez
Mais a frente, o papa aprofunda o caráter espiritual do Reino de Cristo:
A pergunta formal que Lhe fez Pilatos «És Tu o rei dos Judeus?» (Jo. 18, 33), Jesus responde explicitamente que o Seu reino não é deste mundo e, diante da insistência do procurador romano, afirma «Tu o dizes: Eu sou rei», acrescentando logo a seguir: “Para isto nasci, e para isto vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade” (Jo. 18, 37). De tal modo, declara Ele qual é a dimensão exata da Sua realeza e a esfera em que se exercita: é a dimensão espiritual que encerra, em primeiro lugar, a verdade para anunciar e servir. O Seu reino, embora comece cá em baixo na terra, nada tem contudo de terreno, e transcende toda a limitação humana, lançado como está para a sua consumação além do tempo, na infinidade do eterno.
O vínculo do Reinado de Cristo com o Calvário volta em Bento XVI, quando analisa as tentações de Jesus em seu "Jesus de Nazaré”. Em uma das tentações, o Diabo oferece a Jesus o senhorio sobre todo o mundo, dizendo que tudo era dele. Jesus só deveria se ajoelhar diante do tentador. Mas o papa lembra que esse poder oferecido pelo demônio é dado a Jesus por conta da Ressurreição:
Jesus tem esse poder como ressuscitado. Isto é: esse poder pressupõe a Cruz, pressupõe a sua morte. Pressupõe o outro monte - o Gólgota - onde ele está suspenso na Cruz e morre escarnecido pelos homens e abandonado pelos seus. O reino de Cristo é algo completamente diferente dos reinos da Terra e do seu esplendor que Satanás apresenta.
E assim chegamos ao ano passado, quando o papa Francisco declarou na homilia de Cristo Rei, meditando sobre o diálogo com Pilatos, o mesmo citado acima pelo papa João Paulo II:
Jesus é assim. Sem qualquer simulação, proclama com a própria vida que o seu Reino é diferente dos reinos do mundo: Deus não reina, para aumentar o seu poder e esmagar os outros; não reina com os exércitos e com a força. O Seu é o Reino do amor: “Eu sou rei”, mas deste reino do amor; “Eu sou rei”, do reino de quem dá a própria vida pela salvação dos outros.
Do Concílio até aqui, a solenidade de Cristo Rei foi ressignificada. Não se trata mais de recuperar o poder político da Igreja na pessoa de Cristo, mas de enfatizar o seu caráter de negação do poder político humano. Aquilo que aparece meio que por acidente na encíclica de Pio XI - Jesus tem poder político sim, mas ele abre mão porque é bacana - se torna o centro do mistério da realeza de Cristo.
As tentações do cesarismo
Gosto sempre de voltar ao contraponto feito por Bento XVI entre o poder oferecido pelo demônio e o poder real de Cristo que nasce da Cruz e da Ressurreição. Quando rezo os mistérios gloriosos do Rosário, a meditação sobre a Ascenção do Senhor sempre é feita a partir desta perspectiva.
Quando a Igreja ou os católicos decidem reivindicar o seu direito não à cidadania, mas ao poder político, estamos sempre diante da terceira tentação de Cristo. Esta tentação atravessou a história do cristianismo, e nos levou a guerras e injustiças.
São inúmeros exemplos, como o Império Católico de Constantino, o Sacro Império Romano Germânico, a monarquia católica espanhola. Mesmo no mundo não católico, não podemos nos esquecer das relações próximas entre o patriarcado de Moscou e a maioria dos governos da Rússia, inclusive os soviéticos. Ou ainda, mais próximo a nós, o mal que os políticos evangélicos vêm fazendo às suas comunidades, provocando perseguições a quem se recusa a declarar fidelidade a Bolsonaro. Até mesmo um padre falso foi inventado para enganar os cristãos.
Em todas essas ocasiões, os resultados foram ruins para as comunidades cristãs. No século XX, as comunidades católicas mais vibrantes espiritualmente estavam sob perseguição. Foi assim na Polônia sob o nazismo e o comunismo, foi assim na América Latina sob as ditaduras militares. Por outro lado, regimes como o franquismo na Espanha deixaram como legado. Na Espanha, desde o fim da ditadura franquista o número de católicos vem caindo, e está em seu nível mais baixo da história.
Cristo Rei como resistência
Por outro lado, há na história vários exemplos de resistência popular que reivindicou para si a devoção a Cristo Rei. No México, agricultores insatisfeitos com os rumos da Revolução Mexicana promoveram a Guerra Cristeira, na qual associavam a defesa da liberdade religiosa às reivindicações por democracia.
Na resistência às ditaduras militares da América Latina, vários católicos pegaram em armas, como em El Salvador, Nicarágua e Colombia. No Brasil, as pastorais sociais e as Comunidades Eclesias de Base foram fundamentais para a organização popular durante o regime militar.
O ódio dos católicos tradicionalistas que hoje aderem em massa ao neofascismo bolsonarista a estes movimentos é manifesto. Vários pseudoteologos produzem teoria da conspiração até hoje contra a Teologia da Libertação, a mais profunda produção mistica da América Latina. Enquanto santos como Dom Helder Câmara foram viver o Reino de Cristo em meio aos pobres, esses hereges do tradicionalismo, traidores de Cristo, cedem à tentação do demônio e aderem ao esplendor do poder.
Se o reino de Cristo se faz na Cruz, ele é sinal de que os reis deste mundo precisam passar pela guilhotina para, só assim, se tornarem a imagem e semelhança de Cristo. Deus não usa farda, e Cristo, se vivesse em nosso tempo, não estaria nas portas dos quartéis passando vergonha.
Muito bom meditar mesmo sobre a festa de Cristo Rei. Enquanto as Paróquias estão paupérrimas, os Vendilhões do Templo estão rachando de ganhar dinheiro. Se esqueceram do perdão e só pensam em uma coisa: grana. O mais impressionante, contudo, é o seu destemor em relação ao Inferno.