Cuidado com a glamourização do sofrimento
As Bem Aventuranças mostram que Deus está ao lado de quem sofre. Mas isso não significa que o sofrimento deve ser uma meta de vida.
“Bem-aventurados os aflitos, porque serão consolados.” (Mateus 5,4)
As Bem aventuranças trazem para nós uma reflexão de que Deus se une a quem está em sofrimento. Listando uma série de condições humanas difíceis - pobreza, aflição, perseguição - e atitudes incompreendidas - mansidão perante a violência, ter fome e sede de justiça, misericórdia diante dos violentos, pureza de coração, promover a paz - Jesus afirma que é dessas pessoas o reino dos Céus.
Mas devemos nos perguntar se essas pessoas estão com Deus por sua condição de sofrimento, ou porque o sofrimento é consequência de algo, ou seja, de sua atitude de amor combinada à violência dos homens. A resposta é dada pelo próprio evangelho: não é o sofrimento em si que traz a bem-aventurança, mas o fato de que ele é resultado de uma condição - seja ela uma vulnerabilidade, seja uma atitude de testemunho.
Existem medicamentos desenvolvidos para cuidados da saúde mental. Alguns desses medicamentos tem como efeito colateral a redução do apetite, levando à perda de peso. Pergunto: é correto que um médico receite este medicamento, que afeta o cérebro de quem o usa, para emagrecimento?
O mesmo raciocínio vale para o sofrimento e a cruz. As perseguições e a violência que sofremos em nossa vida devem ser entendidas como efeito colateral de algo. Vários de nós sofremos pela nossa condição vulnerável - pela idade, raça, gênero, etnia, neurodivergência, limitações físicas. Outros o são pelas nossas atitudes - por testemunhar a fé, por promover ações como visitar presos ou distribuir comida aos pobres, por defender causas socialmente relevantes.
E assim como não se deve receitar um medicamento pelo seu efeito colateral, não se deve promover o sofrimento ativo, na forma de penitências, por exemplo, como uma estratégia para se conectar com Deus. A penitência não deve ser o centro da vida religiosa, mas sim o amor a Deus.
Digo isso sem desrespeitar de forma alguma a longa tradição católica de promover a ascese como caminho espiritual. A ascese nada mais é do que a aceitação do sofrimento como efeito colateral do testemunho, unindo-se desta forma o fiel a Deus. É a prática das renúncias necessarias para este testemunho, não a busca ativa de novas renúncias.
Ascese x abuso
Por exemplo, na regra de São Bento, a mãe de todas as asceses, o centro da vida espiritual está na obediência a preceitos que disciplinam a vida cotidiana. Por isso, o santo abade já avisava:
Nesta instituição esperamos nada estabelecer de áspero ou de pesado. Mas se aparecer alguma coisa um pouco mais rigorosa, ditada por motivo de equidade, para emenda dos vícios ou conservação da caridade não fujas logo, tomado de pavor, do caminho da salvação, que nunca se abre senão por estreito início. (grifo meu)
E porque é importante realizar este alerta? Porque há, dentro e fora da Igreja, seitas que promovem relações abusivas e submetem seus membros aos mais duros sofrimentos e assédios, como intrumento de poder. Nestes ambientes não há amor, nem testemunho de fé, mas apenas a instrumentalização da cruz para a quebra da vontade da pessoa e sua submissão total a um líder.
É preciso sempre manter o alerta contra essas atitudes. Um evangelho como o deste domingo, das Bem-aventuranças, pode ser instrumentalizado por psicopatas para promover culturas abusivas dentro de instituições, organizações e movimentos.
A importância do feedback positivo
Nassim Taleb, em Antifrágil, refletiu sobre como a exposição contínua ao estresse, mesmo leve, pode prejudicar o desenvolvimento de uma pessoa:
“Um intenso choque emocional ao ver uma cobra saindo do meu teclado ou de um vampiro entrando em meu quarto, por exemplo, seguido de um período de segurança tranquilizadora (com chá de camomila e música barroca), por tempo suficiente para recuperar o controle de minhas emoções, seria benéfico para minha saúde, desde que, é claro, eu consiga derrotar a cobra ou o vampiro depois de uma luta árdua e, espera-se, heróica, e tirar uma foto ao lado do predador. Tal agente estressor seria, certamente, melhor do que o estresse leve, porém contínuo, de um chefe, de uma hipoteca, de problemas fiscais, da culpa por adiar a declaração do imposto de renda, dos exames, das tarefas, dos e-mails para responder, dos formulários para completar, dos deslocamentos diários - coisas que fazem você se sentir preso na vida. Na verdade, os neurobiólogos afirmam que o primeiro tipo de agente estressor é necessário, enquanto o segundo é prejudicial à saúde. Para se ter uma ideia do quão prejudicial pode ser um estressor de baixo impacto, considere a tortura da água chinesa: uma giota batendo continuamente no mesmo local em sua cabeça, sem nunca permitir que você se recupere.” (grifo meu)
Um cristão que faz uma romaria a pé uma vez por ano, e passa os dias restantes conduzindo a vida, terá mais benefício - físico e espiritual - desde esforço concentrado que aquele que é diariamente submetido a feedbacks negativos sobre seu caráter, em seções de direção espiritual planejadas para humilhações contínuas da pessoa.
Vejam que no longo parágrafo de Taleb, citado acima, destaque justamente a questão da recuperação. Precisamos sentir que o esforço tem resultado, que somos acolhidos, respeitados. É daí, deste acolhimento, deste feedback positivo, que vem a força para perseverar
Pensemos, por exemplo, no Padre Julio Lancelotti: ele é atacado e criticado por seu trabalho com os pobres, mas é também respeitado e acolhido pelos seus. Este acolhimento gera os feedbacks neurais necessários para que ele suporte as críticas e ataques que sofre. Ataques que ele não busca ativamente, mas que são consequência de seu apostolado.
Por isso, aquele que vê um cristão em condição de perseguição, aflito e abandonado, e diz a ele “você tem que parar de reclamar e se unir à cruz”, ao invés de oferecer um abraço, um ouvido para reclamações e um copo de cerveja, não passa de um babaca desgraçado que merece tomar uns tapas na cara.
“Mas, Paulo, e a caridade cristã?”
Caridade cristã não é cumplicidade com vagabundo abusador reacionário e fascista.
Do que vale o sofrimento, se ele acaba muitas vezes sendo motivo de orgulho para julgar e condenar o próximo ? Imitar Cristo não é sofrer, imitar Cristo é perdoar, a começar com o próprio eu. Perdoar e comungar são os dois únicos caminhos válidos para a felicidade terrena e eterna; todo o resto é apenas fruto de bizarras ideias de mentes não sadias, que vão se alastrando ao longo do tempo com a mesma facilidade que uma fake News circula no Whatsapp.