É hora de libertar nossas comunidades do gaslighting
Paróquias e movimentos precisam se tornar ambientes acolhedores para os diferentes e divergentes
Este texto nasceu de uma conversa que tive esta semana com um sacerdote de uma instituição da Igreja Católica à qual fiz parte por alguns anos. Nasceu também da onda de crise e desalento que vem se abatendo sobre comunidades cristãs, na esteira da colonização das comunidades e seus líderes, padres e pastores, pela polarização política. Polarização essa que resultou em práticas institucionalizadas de gaslighting contra os divergentes.
Outro dia, no episódio sobre a Nicarágua no podcast Os Macabeus, o convidado Raylson Araújo disse:
“Pelo menos de 2016 para cá a gente vive um momento muito complicado em nossas comunidades, as nossas comunidades estão divididas, e é aquilo que disse o frei Cantalamessa, em 2020 ou 2021, não me lembro bem, que a catolicidade está dividida, e não é pelos valores do evangelho”
Raylson faz referência à homilia do Frei Ranniero Cantalamessa, pregador da Casa Pontifícia, na Sexta-feira Santa de 2021:
“É isto [a opção política], em certas partes do mundo, o verdadeiro fator de divisão, ainda que tácito ou indignadamente. Isto é um pecado, no sentido mais estrito do termo. Significa que o “o reino deste mundo” se tornou mais importante, no próprio coração, do que o Reino de Deus”.
Estamos vendo no seio das comunidades católicas a promoção do ódio e da divisão em torno de um projeto político, o culto ao Bolsonaro. Influencers católicos estão vendendo cursos sobre Teologia da Libertação que são praticamente a promoção da paranóia conspiratória. Esses cursos roubam o bolso do fiel, pelo dinheiro da inscrição, e depois a sua alma, ao promover o ódio e alimentar o medo de que exista um jacaré debaixo da cama.
E isso dentro das comunidades instala um ambiente de perseguição e inquisição. De um lado e de outro, o que se promove é a prática do gaslighting.
O que é gaslighting?
Gaslighting é o nome que se dá a um processo de manipulação e distorção da realidade que leva a vítima a desconfiar da própria sanidade mental. Recebeu esse nome do filme Gaslight, de 1944, lançado no Brasil como À Meia Luz. Nele, a personagem Paula Alquist, interpretada por Ingrid Bergman, é induzida pelo seu marido, por meio de pequenos truques, a acreditar que está enlouquecendo.
De acordo com a terapeuta Stephanie Sarkis:
Os gaslighters usam suas palavras contra você, tramam contra você, mentem na sua cara, negam suas necessidades, exibem poder excessivo, tentam convencê-la de uma realidade forjada, fazem com que sua família e amigos se voltem contra você - tudo isso para vê-la sofrer, para consolidar o poder deles, e para fazer com que você fique mais dependente deles.
Usualmente o gaslighting tem sido apontado como uma estratégia de manipulação voltada contra mulheres, induzidas nos ambientes profissionais e sociais a desconfiarem de suas próprias capacidades. Mas não é apenas nas questões de gênero que essa prática aparece. Neurodivergentes, por exemplo, são normalmente induzidos a desconfiar da própria capacidade por conta de seu comportamento fora dos padrões.
Eu vivi isso na pele. Até descobrir o meu TDAH (transtorno de déficit de atenção e hiperatividade), várias características minhas eram utilizadas contra mim, seja para me fazer duvidar de minha competência profissional ou mesmo de minha sanidade, seja para induzir os outros a desconfiarem de mim.
E isso foi usado de forma particularmente cruel entre os filhos de Deus. Era muito comum, por exemplo, um julgamento moral dos meus comportamentos impulsivos, com frases como “ele não sabe viver a virtude do autodomínio”, ou “ele não tem disciplina na vida espiritual”.
O gaslighting nas comunidades cristãs
Quando se trata dos ambientes eclesiásticos, como paróquias e comunidades, a principal tática dos gaslighters é plantar na pessoa a dúvida sobre sua fidelidade à Igreja ou até mesmo à Deus. Para isso, eles reciclam velhas condenações, já revogadas, contra os comunistas, para atacar o fiel que não se alinha ao ideal político reacionário dos gaslighters.
“Cuidado, isso aí é teologia da libertação, ou seja, heresia” é uma frase que pode ser usada pelos manipuladores em qualquer situação, desde o uso de violão na missa até o hábito de assistir Big Brother.
Nas últimas décadas, houve um esforço institucional pesado para combater a Teologia da Libertação, as Pastorais Sociais e as Comunidades Eclesiais de Base dentro das paróquias. Para atingir esse objetivo, abriram-se as portas das comunidades inclusive para heresias como o sedevacantismo, que renega a legitimidade dos papas que governaram a Igreja após o Concílio Vaticano II.
O objetivo deste movimento era manter aberto o acesso aos bolsos dos ricos, reconhecidos como abençoados, desde que mantivessem os pagamentos de donativos para arcar pelos belos paramentos e faustosas missas de cura e libertação. Se, para isso, fosse necessário renegar Jesus na figura dos pobres, fosse necessário lançar as próprias almas ao Inferno, isso era considerado um preço pequeno a se pagar por um bom jantar com vinhos.
Então os fiéis estão expostos a toda propaganda política reacionária dentro das igrejas, sem nenhum acesso ao contraditório. E são induzidos a duvidar da própria fé caso tenham um amigo LGBTQIA+, caso ouçam as músicas de alguma diva pop, caso queiram votar em um candidato de esquerda, ou mesmo caso queiram tomar vacina. “Você vai tomar vacina feita de fetos de abortos?” dizem.
E aí voltamos ao alerta do frei Raniero Cantalamessa: as comunidades estão divididas por conta de opções políticas. Os fiéis estão sendo induzidos a duvidar de sua própria fé por aqueles que promovem esse gaslighting em nome de um projeto ideológico. Sob essa tortura psicológica, eles estão sujeitos a escolher entre submeter-se ao que é imposto pelo assediador ou a se afastarem das comunidades.
Como enfrentar o gaslighting
Eu sou meio brigão, então geralmente minha reação nesses casos era praticar o que São Josemaria Escrivá chamava de “apostolado dos palavrões”. No caso, como é da porta da igreja para dentro, podemos chamar de “reformismo dos palavrões” (e meu repertório é razoavelmente extenso). Mas ainda assim essas situações me afetam, me fiseram muitas vezes não me sentir à vontade em minha própria igreja.
Eu encontrei um caminho para me manter em comunhão espiritual em um episódio da vida de Santa Catarina de Sena. Muitas vezes a comunhão lhe era negada, por que em seu êxtase místico ela atrapalhava o andamento da missa. No Diálogo, Deus mesmo lhe disse que, por conta do seu desejo de comungar, Ele se servia do Espírito Santo para realizar em sua alma os efeitos da comunhão:
Então Eu, que exalto os humildes, arrebatei o sentimento daquela serva e a fiz conhecer-me como Pai no abismo da Trindade. Iluminei sua inteligência com meu poder, com a sabedoria do Filho e a clemência do Espírito Santo. A união foi perfeitíssima, ficando o corpo suspenso no ar. (…) Neste abismo, aquela serva recebeu a comunhão, satisfazendo os seus desejos.
Mas o que funciona para mim não deve funcionar para a maioria das pessoas. Nesses casos, urgem que sejam criados ambientes, ainda que virtuais, de acolhimento a essas pessoas que são induzidas a desconfiarem de sua própria fidelidade. O podcast dos Macabeus, que mencionei acima, é um desses casos. Sei de mais de um padre que tem usado a internet para atender os fiéis que se sentem desamparados em suas próprias paróquias.
E tudo isso vai passar. Por meio de sua Providência, Deus se utiliza do mal, da miséria dos perversos, para realizar suas obras na História. A História da Salvação mostra que em momentos de crise Deus suscita profetas para conduzir o seu Povo. Talvez, quem sabe, não seja agora a nossa hora de exercer esse profetismo?