Jesus nas periferias do mundo e da Igreja
Assim como há dois mil anos, Jesus se faz presente nas periferias, nas Galiléias dos pagãos. Mas onde está o centro e a periferia na Igreja atual?
“Ao saber que João tinha sido preso, Jesus voltou para a Galileia. Deixou Nazaré e foi morar em Cafarnaum, que fica às margens do mar da Galileia” (Mateus 4,12-13)
A Galiléia ficava no extremo Norte da Palestina, já na divisa com a Fenícia, atual Líbano. No período que antecede ao reino de Davi, correspondia ao território das tribos de Zabulon e Neftali, referindo-se a filhos de Jacó que têm menos destaque no Antigo Testamento.
Após o reino de Salomão, essas terras serão disputadas entre os reinos de Israel e de Aram, sediado em Damasco, até que com a expansão dos Assírios no século XIV antes de Cristo ficasse em definitivo sob controle estrangeiro.
A cidade de Cafarnaum era uma das vilas de pescadores que ficava às margens do mar da Galiléia, onde nasce o rio Jordão. A principal cidade da região era Tiberíades, batizada em homenagem ao imperador romano Tibério, e sede do reino de Herodes Antipas. Esta cidade hoje está localizada em Israel, mas o mar da Galiléia está localizado próximo à divisa deste país com Síria e Jordânia.
Também no tempo de Jesus, Cafarnaum estava na fronteira, entre os reinos de Herodes Antipas, na Galiléia, e Filipe, localizado no sul da atual Síria. Ambos eram governos vassalos do Império Romano, de cujo exército dependiam para sua segurança.
Por ser uma região de fronteira, controlada por impérios estrangeiros durante séculos, a Galiléia não era reconhecida como um lugar respeitável para os judeus do tempo de Jesus. O centro da religiosidade judaica era Jerusalém, onde estava localizado o Templo e o Grande Sinédrio, uma assembléia de 71 rabinos que regulava a vida cotidiana e religiosa do povo judeu.
Também para os romanos a região da Galiléia não era central. Embora a Judeia fosse reconhecida como província romana, estava subordinada à jurisdição do governador da Província da Síria, com capital em Antioquia, cidade que havia sido a sede do reino grego dos Selêucidas, e que fica ao sul da atual Turquia. Os procuradores romanos na Judéia, como Pilatos, governanavam a partir de Cesareia, localizada mais ao norte, no litoral, entre as atuais cidades de Telaviv e Haifa. A Galiléia estava distante de Cesareia e ainda mais de Antioquia.
A periferia do mercado de bens simbólicos
Quando falamos da forma pela qual as ideias e crenças são construídas na sociedade, estar na periferia não é simplesmente estar longe. Significa estar posicionado estruturalmente na sociedade como quem consome as crenças, gostos e visões de mundo criadas no centro.
Como afirma Pierre Bourdieu, em seu artigo já clássico “O mercado de bens simbólicos” (publicado no Brasil em A Economia das Trocas Simbólicas):
O campo de produção [de bens simbólicos] propriamente dito deriva da estrutura específica da oposição - mais ou menos marcada conforme as esferas da vida intelectual e artística - que se estabelece entre, de um lado, o campo de produção erudita enquanto sistema de produção de bens culturais (e os instrumentos de apropriação desses bens) a um público de produtores de bens culturais que também produzem para produtores de bens culturais e, de outro, o campo da industria cultural especificamente organizado com vistas à produção de bens culturais destinados a não produtores de bens culturais (“o grande público”) que podem ser recrutados tanto nas frações não-intelectuais das classes dominantes (“o público cultivado”) como nas demais classes. (grifos do autor)
No mercado de bens simbólicos - que envolve arte, moda, produtos culturais e, por que não? teologia - o centro é ocupado pelo campo de produção erudita, onde se produz conhecimento abstrato, puro. É nele e para ele que se voltam as estruturas de reprodução do conhecimento - escolas, críticos de arte, semanas de moda - que formam os novos intelectuais.
Na periferia está a indústria cultural. Ela seleciona e distribui conceitos dos bens culturais criados pela produção erudita que possam ter apelo de massa. Tomando a moda por exemplo, as peças que desfilam em eventos como a Semana de Moda de Paris podem soar estranhas ao gosto do consumidor comum, mas é delas que são derivadas as roupas vendidas nas redes de fast fashion.
Para ficar mais claro, lembre-se desta cena de O Diabo Veste Prada:
O mercado de bens teológicos
Na teologia e na vida cristã, há uma estrutura que regula a criação e distribuição das visões de mundo religiosas. Há um centro, um campo de produção erudita, e periferia, abastecida por uma indústria cultural, que distribui as ideias e formas de viver a fé católica criadas neste centro.
No tempo de Jesus o centro era o Grande Sinédrio. Era ali que estava, por exemplo, o rabino Gamaliel II, o professor do apóstolo Paulo. O modo de vida do judaismo pregado na sinagoga de Cafarnaum era criado e distribuído a partir de Jerusalém.
Ao longo do tempo, a fé católica também teve vários centros. As sedes patriarcais do Oriente (Alexandria, Antioquia e Constantinopla), por exemplo, foram o centro de vários debates teológicos fundamentais nos primeiros séculos da era cristã. Quando um fiel reza, na Ave Maria, “Santa Maria, Mãe de Deus”, ele está expressando uma visão de Deus e de Maria definida após uma dura e violenta disputa teológica entre dois patriarcas: Nestório, de Constantinopla, e Cirilo, de Alexandria. Um virou santo, outro herege.
Hoje, podemos considerar que o centro, o campo de produção erudita que influencia a fé católica, é o Vaticano. Sim, de certa forma, mas não só. O que se ensina nas paróquias é fruto de uma rede de faculdades de teologias, tanto em Roma - a Academia Afonsiana, a Gregoriana, a Pontifícia Universidade da Santa Cruz - quanto fora. Muitas dessas instituições são mantidas por congregações religiosas, e movimentos eclesiais.
E este conhecimento é distribuído por meio de redes articuladas por esses movimentos. É o que leva a que muitas vezes a experiência real do cristão na linha de frente esteja submetida a considerações criadas longe dali, em gabinetes de teólogos preocupados em consolidar o poder simbólico de seu movimento eclesial.
O lugar preferencial da periferia no conhecimento de Deus
Contudo, Jesus faz sua pregação em Cafarnaum, e não em Jerusalém. Da mesma forma, ao longo da história, é nas periferias que Deus se revela e empurra para a frente a experiência espiritual da nossa Igreja.
Vejamos, por exemplo, a questão do diálogo ecumênico e inter religioso. Há correntes integristas que consideram qualquer diálogo com o mundo protestante uma profunda traição. Nos últimos tempos essa visão tem impregnado as paróquias. Contudo, no Concílio Vaticano II, o Patriarca grego melquita Máximo IV, cujo rebanho vivia imerso na convivência com os ortodoxos enquanto comunidades igualmente perseguidas pelo Islã, afirmava:
Os católicos vivem há muito tempo misturados com os acatólicos e os acatólicos tem o hábito de frequentar as igrejas católicas e pedem muitas vezes os sacramentos aos padres católicos, sem que cause espécie esse modo de agir. (A Igreja Greco-melquita no Concílio)
É ali, na linha de frente, que católicos e anticatólicos são levados a encontrar um canal de convivência para a própria sobrevivência. Este é só um exemplo de como a experiência espiritual na periferia é rica e surpreendente.
As periferias também são as preferidas das aparições marianas. O indígena mexicano Juan Diego, os pescadores de Guaratinguetá, os bósnios em Medjugorie, os pastores portugueses de Fátima, a jovem seminanalfabeta Bernardette em Lourdes…
Também das periferias têm vindo alguns dos doutores da Igreja mais recentes, como São Gregório de Narek, da Armênia.
Desde o começo de seu papado, Francisco nos lembra:
Cada cristão e cada comunidade há-de discernir qual é o caminho que o Senhor lhe pede, mas todos somos convidados a aceitar esta chamada: sair da própria comodidade e ter a coragem de alcançar todas as periferias que precisam da luz do Evangelho. (Evangelii Gaudium)
Em tempos nos quais precisamos superar a onda de radicalização e fascismo que corrói a Igreja, cabe a nós voltar às periferias, ir em busca das pessoas que estão se afastando das comunidades por não se sentirem acolhidas e respeitadas em sua experiência. É a hora de voltar a Cafarnaum.
Muitos papa-hóstias são especialistas em se esquecer das periferias, dos abandonados, dos doentes, dos seres humanos originais... Esquecem -se, assim, em um jogo mental paradoxal, do próprio Cristo...