Natal: o bebê Jesus sente cólicas e arrota
No mistério do Nascimento de Jesus, vemos o mergulho de Deus na humanidade, como uma injeção endovenosa que diviniza tudo o que é humano
“E a Palavra se fez carne e habitou entre nós.” João 1,14
Em nenhum momento a vida humana é mais vulnerável do que no nascimento. Sim, cada um pode correr riscos a vida toda, mas todos estão expostos à mesma fragilidade no exato instante em que vêm ao mundo. Os órgãos ainda não funcionam, respirar dói, a imunidade é frágil, vários ossos estão ainda se formando... Imagina então aqueles que puderam olhar para uma criança recém nascida e viram ali o próprio Deus.
Este é o mistério do Natal.
O nome técnico, formal, é Encarnação, ou seja, o processo pelo qual Deus se faz homem. Mas podemos dizer, em português mais claro, que ali acontece o mergulho de Deus na nossa humanidade.
Nada do que é humano a Jesus é estranho
No Credo Niceno-constantinopolitano rezamos que Jesus é “verdadeiro Deus e verdadeiro homem”. É uma afirmação corajosa, e que envolve uma compreensão profunda do mistério.
É muito fácil afirmar a divindade de Jesus, especialmente para nós que estamos a 20 séculos de distância do seu nascimento. Precisamos a todo tempo retomar à sua humanidade, ao fato de que Jesus, filho de José, é um homem pleno, que viveu em um determinado momento histórico, com todos os desafios de uma pessoa comum.
Mas mesmo nos primeiros séculos foi necessário afastar da pessoa de Cristo a imagem de um ser superpoderoso. Um dos textos apócrifos, o Protoevangelho de Tiago, apresentava o menino Jesus como uma espécie de superboy travesso, que vivia fazendo milagres estúpidos e se exibindo para os amiguinhos.
Fez bem a tradição apostólica em evitar que este texto figurasse no Novo Testamento: os cristãos de nosso tempo imaginariam Jesus como o personagem da música de Sérgio Mallandro, “Um capeta em forma de guri”.
Jesus é verdadeiro homem. Por isso, parafraseando o poeta romano Terêncio, nada do que é humano lhe é estranho. Sim, é mais provável que o bebê Jesus tenha sofrido de cólicas noturnas, dores de ouvido, atravessado noites de choro. Depois de mamar no colo de Maria, ele certamente era pego por José, que lhe dava tapinhas nas costas estimulando um arroto.
Jesus teve que aprender a andar, a falar. A ler e a escrever. Na oficina de José deve ter aprendido as tarefas da carpintaria. Certamente brincou com os vizinhos, se machucou, ralou o joelho. Acordava com ramela nos olhos, tinha cera no ouvido. Teve que lidar com o chulé e o odor do suvaco.
A lista poderia ir mais longe ainda.
Redimindo cada realidade humana na pessoa de Jesus
O ponto é que ao viver plenamente a sua humanidade, Jesus conduziu o projeto de salvação de Deus. A redenção não se resume ao sacrifício da Cruz. Jesus redimia o mundo em cada realidade humana que vivia como nós.
Diz Bento XVI em sua Introdução ao Cristianismo:
O “barro” tornou-se ser humano naquele momento em que o ser já não estava mais simplesmente “presente”, mas mas que se abriu, para além da sua presença e do cumprimento de sua carência, para o todo. Mas esse passo, pelo qual entrou no mundo pela primeira vez o “logos”, o entendimento, o espírito, só estará completo quando o próprio logos, toda a razão criadora, e o ser humano mergulharem um no outro
O Logos ao qual se refere o papa emérito é a palavra utilizada por João para se referir a Jesus, traduzida muitas vezes por Verbo ou, na citação que usamos, Palavra. Jesus é a Palavra, o Logos, por meio do qual Deus pronuncia os comandos da Criação do Mundo. E esta Palavra se faz Homem, verdadeiro homem.
Por isso o mistério do Natal é tão importante. E chega a ser curioso que durante os vários séculos nos quais a teologia privilegiou o sacrifício da Cruz em detrimento dos outros eventos da vida de Jesus, o povo cristão tenha tornado o Natal uma celebração tão importante em nossa vida social. É como se dissesse aos teólogos “olhem aqui, sem o Natal, sem o mergulho de Deus na nossa humanidade, a Cruz não seria possível”.
Em sua vida, Jesus faz com que toda realidade humana fique repleta de Deus. O Natal é como uma injeção endovenosa que diviniza tudo, e se espalha pela nossa vida. Ele entra tanto nas realidades alegres - casamentos, festas, encontros com os amigos, vida em família - quanto nas tristes - fome, solidão, doença, angústia, morte. A partir dEle, podemos crer que Deus está conosco em cada momento que vivemos, porque Ele mesmo o viveu em sua passagem pela terra.
E como verdadeiro homem, toda esperança e medo dos homens e mulheres, individuais e sociais, também se tornam assuntos de interesse de Deus. A Ele interessam todas as pessoas, as que estão dentro e fora da Igreja. Como lembra a abertura da Constituição Pastoral Gaudium et Spes:
As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração.
Por isso, viva o Natal alegremente! Comemore, sem vergonha nem culpa. Deus está conosco!
Feliz Natal!