O dia e a hora
Na preparação para a chegada do Natal do Senhor, o evangelho nos alerta para os perigos das correntes milenaristas
“Ficai atentos! porque não sabeis em que dia virá o Senhor. Compreendei bem isso: se o dono da casa soubesse a que horas viria o ladrão, certamente vigiaria e não deixaria que a sua casa fosse arrombada. Por isso, também vós ficai preparados! Porque na hora em que menos pensais, o Filho do Homem virá”.
Mateus 24,42-44
Neste domingo começa o Advento, período de quatro semanas nas quais os católicos se preparam para a chegada do Natal. Sim, os católicos, os shoppings centers já fizeram as decorações natalinas no final de outubro.
Na liturgia deste domingo, como de hábito em todos os primeiros domingos do Advento, a reflexão se volta para o dia final, a segunda vinda de Cristo. E, como em todos os primeiros domingos do Advento, o alerta vem: ninguém sabe o dia nem a hora.
E é um alerta importante, porque o esporte preferido de diversas denominações cristãs é tentar definir o dia e a hora da chegada de Cristo. O que chega a ser divertido, pensando, em tempo de Copa do Mundo, que os mesmos cristãos fundamentalistas consideram o futebol uma estupidez, já que se trata de 22 homens correndo atrás de uma bola sem nenhuma razão por 90 minutos. Diria que é mais útil e relevante para a existência humana correr atrás de uma bola por 90 minutos que ficar especulando sobre o dia da volta de Cristo, mas cada um que fique com o seu esporte preferido.
O medo do fim do mundo é um gatilho muito poderoso para mobilizar as hordas de fanáticos. Igrejas inteiras como a Adventista se construíram sobre a esperança da chegada de Cristo, e fizeram cálculos complexos para estimar o dia e a hora deste evento. Todos deram profundamente errado. Ainda assim, teologias milenaristas sobre o fim do mundo continuam proliferando nas fileiras cristãs.
De todas as correntes teológicas milenaristas, a mais influente nos nossos dias é o dispensacionalismo. Ela inclusive mobiliza decisões de ordem política, como a transferência de embaixadas para Jerusalém. E por isso, embora seja uma corrente teológica protestante, é importante que nóis a conheçamos, tanbto para um diálogo ecumênico consistente, quanto para evitar a instrumentalização política das comunidades movida por conceitos não católicos.
O que é o dispensacionalismo
O dispensacionalismo é uma corrente teológica que surge na Igreja Anglicana no século XIX. John Nelson Darby, um ministro anglicano que se une a um grupo chamado “os Irmãos de Plymouth” por volta de 1830, foi o principal expoente desta corrente.
A base dessa corrente é a organização da História em fases definidas chamadas de “dispensações”. Uma dessas fases é a Era de Israel, à qual estariam vinculadas as promessas do Antigo Testamento. A seguinte, inaugurada com a vinda de Cristo, seria uma Era da Igreja, governada pelo Novo Testamento. Pela teologia dispensacionalista, há uma separação profunda entre o povo de Israel e a Igreja, ao ponto de nenhuma profecia do Antigo Testamento dizer respeito aos cristãos.
Esta divisão se reflete na divisão entre o Céu e a Terra. Para os dispensacionalistas, todas as promessas do Novo Testamento diriam respeito à Nova Jerusalém, a celeste, enquanto as promessas para o Reino de Israel tratariam de seu império sobre esse mundo, terreno.
Além disso, essa corrente organiza a História do mundo em sete “dispensações”:
Da Inocência, que começou com a criação de Adão, e terminou com a sua expulsão do Éden;
Da Consciência, que começou com a expulsão do Jardim (consciência do bem e do mal) e terminou com o dilúvio;
Do Governo Humano, que começou com o dilúvio e terminou com a confusão das línguas;
Da Promessa, que começou com Abraão e terminou com a escravidão no Egito;
Da Lei, que começou no Sinai e terminou com a expulsão de Israel e Judá da terra de Canaã;
Da Graça, a atual, que começou com a morte de Cristo e terminará com o arrebatamento da Igreja;
Do Reino, que começará com a Segunda Vinda de Cristo e terminará com o juízo do Grande Trono Branco – é também chamada de Dispensação do Milênio.
Vem daí que essa corrente teológica alimenta entre os fiéis a expectativa do arrebatamento final, quando haveria a segunda vinda de Cristo. E por que o arrebatamento é importante? Porque os fiéis precisariam ser tirados da Terra para se cumprir as promessas da Deus a Israel, como a reconstrução do Templo de Jerusalém.
Consequências políticas do milenarismo
As correntes milenaristas modernas - os evangélicos as dividem em pré-milenismo, pós-milenismo, amilenismo e dispensacionalismo, mas todas compartilham a visão acima, com algumas variações - associam a Segunda Vinda de Cristo a aspectos claramente políticos:
A ascenção de um Reino de Cristo na Terra;
A conversão dos judeus ao Cristianismo;
Um acordo entre judeus e árabes que permita a reconstrução do Templo de Jerusalém;
Uma forte propaganda anticristã com perseguição aos cristãos por várias partes do mundo.
Vem daí alguns pontos que aparecem no discurso da extrema direita, instrumentalizando a teologia dispensacionalista e suas variantes para converter os cristãos em sua base política. A extrema direita procura:
Promover a ideia de que um governo alinhado aos seus princípios é um governo cristão, associando-o assim à promessa de que existiria um Reino de Cristo próximo do arrebatamento;
Promovem a defesa do Estado de Israel e combatem a causa palestina, na crença de que quanto mais forte o Estado Judeu, mais próximo o arrebatamento;
Associam a esquerda e as pautas de liberdade e proteção às minorias à propaganda anticristã. Gostam inclusive de promover o “combate a cristofobia” e apontar indícios de intolerância anticristã a todo momento, para indicar que “a grande tribulação” está chegando.
A captura das doutrinas milenaristas pela extrema direita é parte de sua estratégia de mobilização. Contam com o apoio de lideranças religiosas aliadas, para assim amalgamar a base evangélica e mesmo a católica que orbita em torno do neopentecostalismo em torno de sua agenda política e ideológica.
Quando um pastor afirma que Jesus era armamentista, quando um padre posa para fotos com um rifle, quando espalham teorias conspiratórias contra as agendas de inclusão, o que eles estão fazendo é usar a expectativa dos cristãos pela volta de Cristo para promover a sua agenda política. Consequentemente, cristãos fanatizados ajudam oportunistas a protegerem seus confortos mundanos.
Mas afinal, qual o dia e a hora?
Padre Antônio Vieira, em seu Sermão da Primeira Dominga do Advento, já alertava que, melhor do que ficar procurando indícios de um arrebatamento que não vai acontecer, os cristão devem estar preparados para o seu próprio fim a qualquer dia.
O vale de Josafá não está só em Jerusalém, nem entre o Monte Sião e o Olivete; está em Lisboa, está neste mesmo lugar, e em todos os do mundo. Se vos tomar a morte no mar, ou na campanha, ou na vossa cama, o mar, a campanha, a vossa cama é o vale de Josafá, e esse dia, qualquer que for, é o vosso dia do Juízo, ou mais cedo, ou mais tarde, mas dentro deste mesmo século em que nascemos.
Portanto, deve o cristão refletir sobre o verdadeiro valor do que está construindo em sua vida, e de seu impacto neste mundo:
Perguntai a essas casas, a essas quintas, a essas herdades prezadas; perguntai a essas salas e galerias douradas, a esses jardins, a essas estátuas, a essas fontes, a essas alamedas e bosques artificiais, cujos frutos são somente a sombra, perguntai-lhes de quem foram, e de quem são, e de quem hão de ser? Isto é o que sucede aos que acabam o seu mundo antes que o mundo se acabe. Sabem o que deixam, mas não sabem para quem.
Neste Advento, e em todos os Adventos que virão, os cristãos deveriam se perguntar sobre o que têm feito de suas vidas: se amam ao próximo, se são puros e fiéis em seu amor a Deus, se estão abertos a acolher o diferente como o Samaritano fez com o homem ferido na estrada. Isso seria de mais valia que ficar caçando sinais de arrebatamento como quem caça pokemon, tornando-se bucha de canhão de fascista enquanto isso.