O homem vive de pão sim. E outras coisas
Em tempo de Campanha da Fraternidade sobre a fome, muitos usarão o evangelho do primeiro domingo da Quaresma contra a justiça social
“O tentador aproximou-se e disse a Jesus: ‘Se és Filho de Deus, manda que estas pedras se transformem em pães!’. Mas Jesus respondeu: ‘Está escrito: Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus’”. (Mateus 4, 3-4)
Todo ano algumas coisas se repetem: temos Carnaval, Natal, Campeonato Brasileiro e a direita católica criticando a CNBB por realizar a Campanha da Fraternidade. Nunca falha. E este ano, cujo tema é “Fraternidade e Fome” e o lema “Dai-lhes vós mesmos de comer”, não poderia ser diferente.
Falar de fome, para essas pessoas, é falar de comunismo. E o evangelho deste domingo parecer reforçar suas convicções: quem fala em matar a fome é o diabo, e a resposta de Jesus parece afirmar que o foco do cristão não deveria estar na fome, mas na evangelização.
Nada mais falso. A começar que no mesmo evangelho de Mateus, mais para a frente, Jesus se identifica com as pessoas com fome:
“Então, o Rei dirá aos que estão à direita: ‘Vinde, benditos de meu Pai, tomai posse do Reino que vos está preparado desde a criação do mundo, porque tive fome e me destes de comer; tive sede e me destes de beber; era peregrino e me acolhestes; nu e me vestistes; enfermo e me visitastes; estava na prisão e viestes a mim’. Os justos lhe perguntarão: ‘Senhor, quando foi que te vimos com fome e te demos de comer, com sede e te demos de beber? Quando foi que te vimos peregrino e te acolhemos, nu e te vestimos? Quando foi que te vimos enfermo ou na prisão e te fomos visitar?’. Responderá o Rei: ‘Em verdade eu vos declaro: todas as vezes que fizestes isso a um destes meus irmãos mais pequeninos, foi a mim mesmo que o fizestes.’” (Mateus 25,34-40)
Então sim, é missão dos cristãos católicos lutar contra a fome. O próprio Catecismo da Igreja Católica assim o afirma:
A aceitação pela sociedade humana de fomes mortíferas, sem se esforçar por lhe dar remédio, é uma escandalosa injustiça e um pecado grave. (Catecismo § 2269)
E o João Paulo II deixava esse compromisso ainda mais evidente, na Encíclica Novo Millennio Ineunte:
Como é possível que ainda haja, no nosso tempo, quem morra de fome, quem esteja condenado ao analfabetismo, quem viva privado dos cuidados médicos mais elementares, quem não tenha uma casa onde abrigar-se? (…) O cristão, que se debruça sobre este cenário, deve aprender a fazer o seu ato de fé em Cristo, decifrando o apelo que Ele lança a partir deste mundo da pobreza. (…) É hora duma nova « fantasia da caridade », que se manifeste não só nem sobretudo na eficácia dos socorros prestados, mas na capacidade de pensar e ser solidário com quem sofre, de tal modo que o gesto de ajuda seja sentido, não como esmola humilhante, mas como partilha fraterna.
Mas, então, qual o mistério por trás da tentação do demõnio a respeito da fome? Temos duas pistas importantes na cena:
na fala do demônio: “se és filho de Deus”;
na resposta de Jesus: “não vive somente de pão”.
Se és filho de Deus
Bento XVI, em seu Jesus de Nazaré, se desbruça justamente no tom desafiador do demônio ao falar da fome:
Escárnio e tentação andam aqui perfeitamente juntos: para se tornar digno de fé, Jesus deve apresentar a prova da sua pretensão. Esta exigência de prova percorre toda a História da Vida de Jesus, visto que constantemente o acusam de não ter p rovado suficientemente pois não realizou o grande milagre que retirasse toda a ambiguidade e toda a contradição e que a todos clara e indiscutivelmente mostrasse quem ele era ou não.”
Por essa perspectiva, a fome não é a tentação, mas o seu pretexto. A todo tempo nos evangelhos aparece o desafio:
“Se és Filho de Deus, lança-te abaixo, pois está escrito: ‘Ele deu a seus anjos ordens a teu respeito; eles te protegerão com as mãos, com cuidado, para não machucares o teu pé em alguma pedra” (São Mateus 4, 6);
“Tu, que destróis o templo e o reconstróis em três dias, salva-te a ti mesmo! Se és o Filho de Deus, desce da cruz!”. (São Mateus 27, 40);
“Ele salvou a outros e não pode salvar-se a si mesmo! Se é rei de Israel, desça agora da cruz e nós creremos nele!” (São Mateus 27, 42).
O demônio não quer conter a fome, quer algo espetaculoso. Ainda hoje, a fome é pretexto para atacar aqueles que se dedicam a uma causa. “Socialista de iPhone!” “Por que o Vaticano não vende o seu trono de ouro” e outras afirmações como essas escondem o descompromisso de quem não aplaca a fome do próximo nem deixa os outros o fazerem.
Somente de pão
E aí vem o outro lado da fome como tentação. Há muitas pessoas que compartilham dos valores do fascismo, do supremacismo racial e do autoritarismo, mas que se dedicam a projetos de caridade. Mas, muitas vezes, está implícito na ação de quem ajuda uma exigência de que o ajudado permaneça submisso e humilhado.
Nas eleições o vídeo acima viralizou, em uma demonstração dessa atitude. Aquele que ajuda exige da mulher faminta uma contrapartida - no caso, um compromisso eleitoral. Em condição de vulnerabilidade social, é negada a ela toda e qualquer dignidade.
E, não se iludam, essa atitude não é exclusiva das correntes políticas à direita. Quantas vezes políticos de esquerda exigem de eleitores pobres uma submissão total à sua agenda como gratidão pelas políticas sociais?
A música Comida, dos Titãs, explora exatamente este ponto:
A gente não quer só comida
A gente quer comida, diversão e arte
A gente não quer só comida
A gente quer saída para qualquer parte
A gente não quer só comida
A gente quer bebida, diversão, balé
A gente não quer só comida
A gente quer a vida como a vida quer
Trata-se do direito da pessoa à dignidade humana. Afirma o Compêndio da Doutrina Social da Igreja:
Em nenhum caso a pessoa humana pode ser instrumentalizada para fins alheios ao seu mesmo progresso, que pode encontrar cumprimento pleno e definitivo somente em Deus e em Seu projeto salvífico: efetivamente o homem, na sua interioridade, transcende o universo e é a única criatura que Deus quis por si mesma. Por esta razão nem a sua vida, nem o desenvolvimento do seu pensamento, nem os seus bens, nem os que compartilham as sua história pessoal e familiar, podem ser submetidos a injustas restrições no exercício dos próprios direitos e da própria liberdade.
A pessoa não pode ser instrumentalizada para projetos de caráter econômico, social e político impostos por qualquer que seja a autoridade, mesmo que em nome de pretensos progressos da comunidade civil no seu conjunto ou de outras pessoas, no presente e no futuro. È necessário portanto que as autoridades públicas vigiem com atenção, para que toda a restrição da liberdade ou qualquer gênero de ônus imposto ao agir pessoal nunca seja lesivo da dignidade pessoal e para que seja garantida a efetiva praticabilidade dos direitos humanos. Tudo isto, uma vez mais, se funda na visão do homem como pessoa, ou seja, como sujeito ativo e responsável do próprio processo de crescimento, juntamente com a comunidade de que faz parte.
(Compêndio da Doutrina Social da Igreja, § 133)
Forçar uma pessoa a abrir mão de sua dignidade em troca de um prato de comida é uma ofensa moral de alta gravidade. Em nossa luta contra a fome, também está implícita a luta pela geração de oportunidades para que todos possam viver com dignidade, reconhecidos os seus direitos e as suas liberdades.
Enquanto vendilhões do Templo engordam horrores vendendo a fé católica, temos a infame luta de dezenas de milhões de brasileiros por calorias diárias mínimas. É tempo de Conversão.