O legado de Jonas Abib
Morreu nesta terça-feira o monsenhor Jonas Abib, fundador da Canção Nova, que se tornou uma instituição central do catolicismo brasileiro
Não é possível entender os rumos que a Igreja Católica tomou no Brasil pelo menos nos últimos 30 anos sem passar pelo papel Central da Canção Nova e de seu fundador, o monsenhor Jonas Abib. De uma iniciativa apostólica criada para os jovens, tornou-se um importante polo irradiador de catequese e devoções.
Por isso, refletir sobre o legado de Jonas Abib é fundamental para que se possa pensar o que será do catolicismo brasileiro daqui para a frente. Para o bem e para o mal, a Canção Nova se tornou uma espécie de demiurgo das comunidades católicas em nosso país.
Sim, este legado é ambíguo, como ambígua é a nossa vida. Por exemplo, é por meio da Canção Nova que diversas devoções populares e muito da formação de base dos agentes de pastoral chegou às mais diversas comunidades. Também foi por meio dela que o centro do conservadorismo católico contemporâneo se organizou no Brasil.
Se você assiste ao padre Fábio de Melo no Domingão com Huck na TV Globo, deve isso à Canção Nova, que lançou seus primeiros discos e impulsionou o seu trabalho artístico e pastoral. Se você estudou teologia nos livros de Felipe de Aquino, também foi por causa da Canção Nova.
Este artigo é uma homenagem ao monsenhor Jonas Abib, e um reconhecimento da importância do seu trabalho pastoral e espiritual. É também uma crítica fraterna aos pontos mais problemáticos de seu legado. Pontos esses que em nada diminuem o eventual odor de santidade que porventura venha a ser reconhecido na sua vida.
A Canção Nova e a Renovação Carismática
A Canção Nova surge nos anos 1970 como desenvolvimento do trabalho pastoral do padre Jonas Abib com os jovens. Natural do interior de São Paulo, Jonas foi ordenado sacerdote em 1964, como religioso da Congregação Salesiana de Dom Bosco.
A Congregação direcionou o jovem padre ao Vale do Paraíba, onde atuava na Faculdade de Ciências e Letras de Lorena e pregava para encontros de jovens e retiros. É nesse trabalho que o padre Jonas conhece a Renovação Carismática Católica, por meio de um de seus propagadores no Brasil, o padre Haroldo Joseph Rahm, em 1971.
A Canção Nova nasce do trabalho de Jonas Abib nesses encontros e retiros com jovens, movidos pelo espírito da Renovação Carismática. De certa forma, podemos afirmar que a espiritualidade carismática é fundacional na Canção Nova, é parte integrante de seu DNA espiritual.
Por isso, a expansão da Canção Nova e a da Renovação Carismática são dois processos complementares e que se retroalimentam mutuamente. A Canção Nova promove a RCC, e ao mesmo a RCC se torna o meio no qual cresce a Canção Nova.
E é importante destacar que a expansão da Renovação Carismática no Brasil acontece em um cenário de crescimento da cultura pop no Brasil, Nos anos 1980, temos o primeiro Rock in Rio, que foi expressão da música pop por essas bandas, e marcou vários movimentos artísticos. Chitãozinho e Xororó admitem que foi no festival que eles perceberam que precisavam incorporar elementos do pop na música sertaneja.
Traçando um paralelo, os carismáticos deram ao catolicismo uma roupagem pop. Por isso, foi fundamental que a Canção Nova soubesse estruturar uma máquina única de comunicação católica.
A máquina de comunicação
A Canção Nova foi fundada em 1978, e já em 1980 é inaugurada a Rádio Canção Nova, em Cachoeiro Paulista (SP), também no Vale do Paraíba. Nove anos depois, é inaugurada a TV Canção Nova, com sinal UHF.
Hoje a sua estrutura conta com várias outras iniciativas de comunicação, como a editora, uma gravadora de discos e um site com elevada relevância orgânica - seu Domain Authority medido pela Moz é 80, uma das mais altas taxas possíveis. Só para comparação, o DA do site da CNBB é 72. Conta também com uma Faculdade e um Santuário, Pai das Misericórdias, que recebe romarias de todo o Brasil, e onde são realizados encontros e retiros.
Guardadas as devidas proporções, a Canção Nova é uma espécie de Walt Disney Company do catolicismo brasileiro, com uma integração equivalente entre as diferentes iniciativas, de modo que uma retroalimenta a outra. Um católico brasileiro consegue ter uma experiência completa de consumo dos bens de salvação - como diria Max Weber - sem sair do seu “mercado de bens simbólicos” - como diria o sociologo Pierre Bourdieu.
Esta máquina de comunicação se tornou viável pela capacidade da Comunidade Canção Nova de levantar doações dos fiéis e simpatizantes por todo o Brasil. Diferentemente da Rede Vida, a primeira emissora de TV católica do país, a Canção Nova não vende espaço publicitário, mas vive das receitas geradas pelas suas iniciativas apostólicas, o que é um feito incrível de gestão (e digo isso sem nenhuma ironia).
O profissionalismo comunicacional da Canção Nova e o espírito pop da Renovação Carismática permitiu que ela se tornasse a vanguarda de um combate ideológico que se dá no catolicismo brasileiro nos anos 1990, contra a Teologia da Libertação.
O conservadorismo carismático
As Comunidades Eclesias de Base e a Teologia da Libertação surgiram nos anos 1970 e 1980 como um grande incômodo para o conservadorismo católico. Nos primeiros anos, o embate vai se dar em condições desfavoráveis aos conservadores, a partir de lugares de fala marcados pelo elitismo, como as colunas de Gustavo Corção e a TFP.
O papa João Paulo II, que era ele próprio um ativo líder pastoral dos jovens na Polônia, e soube incorporar em sua atuação evangelizadora uma certa aura pop - como já diziam os Engenheiros do Havaii - promoveria a mudança que viraria o jogo. Na abertura da Conferência Episcopal de Santo Domingo, em 1992, o papa consolida a visão do que seria conhecido como “A Nova Evangelização”:
A novidade da ação evangelizadora a que temos convocado afeta a atitude, o estilo, o esforço e a programação ou, como propus em Haiti, o ardor, os métodos e a expressão. Uma evangelização nova no seu ardor supõe uma fé sólida, uma caridade pastoral intensa e uma fidelidade a toda prova que, sob o influxo do Espírito, gerem uma mística, um incontido entusiasmo na tarefa de anunciar o Evangelho.
O chamado do papa à Nova Evangelização se desloca da questão doutrinal para o ardor na evangelização, o entusiasmo no anúncio. Ou seja, no querigma, no anúncio de uma novidade que é Cristo como uma pessoa com quem o cristão se relaciona.
Vários movimentos se viram alinhados a este chamado, como os Encontros de Casais com Cristo ou os Focolaris. Mas a Renovação Carismática estava especialmente posicionada para ser a expressão mais acabada da Nova Evangelização: ela se mostrava um movimento jovem, com uma expressão cultural pop, manifesta em camisetas, músicas e danças, mais ao gosto popular dos anos 1980 e 1990 que o cancioneiro das CEBs.
E a Canção Nova soube entregar essa Nova Evangelização com uma competência única. Nos seus retiros, nos discos do padre Jonas Abib e posteriormente de outros “padres cantores”, como Fábio de Melo, e nos diversos produtos de comunicação, ela ocupou um lugar central nesta Nova Evangelização.
Por meio da Canção Nova, amplificam-se testemunhos como o do Padre Léo, que realizou um importante trabalho de recuperação de dependentes químicos na Comunidade Bethania.
Ao mesmo tempo, a Canção Nova vai dando espaço a projetos de formação catequética e teológica alinhada ao conservadorismo. A expressão de maior alcance foi Felipe de Aquino, um leigo que se apresentava como professor e era responsável por cursos e programas de teologia.
Felipe de Aquino se tornou para muitas comunidades a principal referência em teologia nos anos 2000. Atualmente está à frente da Editora Cléofas, que publica textos de teólogos tradicionalistas e do próprio professor.
Também estão no entorno da Canção Nova políticos de matiz conservador, como o deputado estadual padre Afonso Lobato, atualmente no Podemos, e que não se elegeu deputado federal em 2022.
Essa combinação de conservadorismo teológico e mística pop foi crucial para a virada do catolicismo brasileiro nas últimas décadas. Chega a ser curioso que no dia da morte de monsenhor Jonas Abib, sedevacantistas tenha se dedicado a atacar a sua memória, já que esses sedevacantistas foram “legitimados” pelos movimentos culturais deflagrados pela máquina de comunicação da Canção Nova.
Um breve balanço
Por isso, ao homenagearmos o fundador da Canção Nova, não podemos deixar de fazer um balanço das contradições de seu legado. Sim, é inegável o seu papel tanto na renovação da expressão espiritual católica no Brasil quanto na sua revitalização. Graças à Canção Nova temos, por exemplo, o padre Fábio de Melo, cujo testemunho espiritual é único e necessário para o nosso tempo. Ou mesmo o Padre Léo, que se encontra em processo de canonização e já foi reconhecido como servo de Deus.
Por outro lado, é por meio da máquina de comunicação da Canção Nova que novos movimentos conservadores como os Arautos do Evangelho - herdeiros da TFP - ganharam projeção. Muito do radicalismo reacionário católico contemporâneo se desenvolveu no seu entorno, e muitas vezes foi por ela promovido.
As contradições fazem parte da vida. E essa ambiguidade é também sinal de vitalidade do movimento fundado por Jonas Abib.
Que o monsenhor descanse em paz!