O papel crucial de Maria na Salvação do mundo
Na reta final do Advento, a liturgia foca no sim de Maria que tornou possível a Encarnação de Cristo e, como consequência, a Salvação do Mundo.
Tudo isso aconteceu para se cumprir o que o Senhor havia dito pelo profeta: "Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho. Ele será chamado pelo nome de Emanuel, que significa: Deus está conosco". (Mateus 1,22-23)
A partir do dia 17 de dezembro, a liturgia do Advento tira seu foco de João Batista e se volta a Maria. No dia 18, comemora-se o dia de Nossa Senhora do Ó, também conhecida como Nossa Senhora do Bom Parto, lembrando a fadiga dos últimos dias de gravidez da Mãe do Salvador.
Mas dezembro é um mês essencialmente mariano. Começa com 8 de dezembro, quando se celebra a Imaculada Conceição, passa por 12 de dezembro, dia de Nossa Senhora de Guadalupe, entra nas celebrações do Natal e, por fim, em 1 de janeiro, celebra-se a solenidade da Mãe de Deus.
De fato, a Imaculada Conceição e a Maternidade Divina de Maria estão diretamente relacionadas ao mistério do Natal. Para que Deus mergulhasse na nossa humanidade, foi preciso a participação de uma mulher, que aderiu livremente a este projeto.
No final de semana do Natal vamos entrar mais fundo no mistério da Encarnação, ou seja, do mergulho de Deus em nossa Humanidade. Hoje, nosso foco é refletir brevemente sobre o lugar de Maria e seu impacto.
Maria na promessa messiânica
Comecemos pelas leituras deste domingo. Na primeira leitura, o profeta Isaias anuncia ao rei Acaz que “a jovem conceberá e dará a luz a um filho, que será chamado Deus Conosco”. No evangelho, esta profecia é repetida pelo anjo Gabriel a José, na tradução grega: “A virgem conceberá e dará a luz um filho, que será chamado Emmanuel (Deus conosco)”.
Ignoremos neste momento a questão da tradução, “jovem” x “virgem”. Aqui o essencial é a conexão entre a profecia de Isaias e a sua reinterpretação messiânica no tempo de Jesus.
A profecia original
No tempo da profecia de Isaias, o reino de Judá vivia uma longa decadência, que levaria pouco mais de um século depois ao exílio na Babilônia. Davi havia aproveitado um hiato na dominação dos grandes impérios do Levante e havia construído um pequeno domínio na região da Palestina, que ia até Damasco. Este domínio havia sido estabilizado no reino de seu filho Salomão, mas logo se dividiu em dois e perdeu pedaços.
Ainda assim, os dois reinos seguintes, Israel e Judá, permaneceram disputando a hegemonia na Palestina, não só entre eles, mas também com o reino de Aram, cuja capital era Damasco. Isto porque o hiato que beneficiou Davi se prolongou ainda por alguns séculos.
Que hiato era esse? A Palestina sempre foi uma área em disputa entre os diferentes impérios da região do Levante. Por ser uma área de passagem, ela trocou de mãos várias vezes: os Faraós do Egito, os hititas (que vinham da região da atual Turquia), os assírios (do norte do atual Iraque) e a Babilônia (localizada próximo da atual Bagdá) dominaram a região e disputaram-na entre si, até que no século VI antes de Cristo os persas estabilizassem a região sob seu domínio.
No entanto, por volta do século XI antes de Cristo nenhum desses impérios estava disputando a região. Isso permitiu que se levantassem pequenos impérios locais, como os filisteus (povos originários da Grécia e que levaram o uso do ferro à Palestina), os fenícios e diversos povos arameus, entre eles os israelitas liderados por Davi. Este hiato se prolongaria até o século VII, quando os assírios avançam sobre a região.
É neste avanço assírio que Acaz se vê acuado. O reino de Judá está sendo acossado por reinos vizinhos, e ele pede ajuda ao emergente Império Assírio para se defender, em troca de vassalagem. Foi um dos meios pelos quais os assírios fincam os pés na Palestina.
É durante um desses ataques que o profeta anuncia a chegada de um novo rei, que libertaria o país. Esse rei realmente nasceu, era o filho de Acaz, Ezequias, que conseguiria não só resistir a ataques dos assírios como vivenciaria um milagre: durante um cerco a Jerusalém sob a liderança do rei assírio Senaquerib, uma epidemia misteriosa se espalha no exército e os obriga a recuarem. Essa história está nos capítulos 18 e 19 do segundo livro dos Reis.
A reinterpretação messiânica
O sucesso de Ezequias seria efêmero, e não garantiria a sobrevivência do reino de Judá. Este sucumbiria um século mais tarde, sob o avanço do Imperio da Babilônia. Os judeus seriam retirados de sua terra, e só retornariam quando os persas derrotassem a Babilônia e permitissem o retorno a Jerusalém.
No entanto, desde a queda para a Babilônia, os judeus ficariam quase três mil anos sem um estado próprio. Conseguiriam alguma independência após a revolta dos Macabeus no século II, mas esse governo seria ora vassalo dos gregos, ora dos romanos, e nos tempos de Jesus estava sob uma dinastia de não judeus, os Herodes. Estado independente mesmo só em 1948, com a criação do Estado de Israel.
É aí que cresce entre os judeus a esperança messiânica. Os reis de Israel, desde Saul (antecessor de Davi), não eram coroados, mas ungidos, ou seja, era derramada uma quantidade de azeite sobre suas cabeças. Ungido em hebraico era mashiah, que foi latinizado para Messias. Mashias traduzido para o grego é Χριστός (christós), que seria latinizado para Cristo.
A esperança messiânica é, portanto, e espera pelo retorno do filho de Davi. Com o tempo, as profecias do retorno do Messias não envolviam apenas o reino de Israel, mas a salvação da humanidade. É neste expectativa que chega Jesus.
E Maria está inserida nesta promessa. Para que viesse o Messias, era necessário que ele nascesse de uma mulher, de uma virgem, uma jovem. Não uma mulher qualquer, mas uma das grandes mulheres de Israel.
As grandes mulheres de Israel
O Antigo Testamento está repleto de grandes personagens mulheres. Não apenas mães, mas também rainhas, líderes militares. Sara, Raquel e Lia, Tamar, Rute, Ester, a juiza Débora, Miriam (irmã de Moises), Judite.
Essas mulheres cortaram cabeças de generais, lideraram exércitos, intercederam para salvar a vida de seu povo, e cantaram a vitória dos mais fracos. O Cântico dos Cânticos celebra “aquela que surge como a Aurora”.
Daniela del Gáudio, em seu Breve Tratado de Mariologia, afirma:
A Virgem Maria, vista como a mulher por excelência, é, portanto, modelo de feminilidade forte e corajosa, que não cede a compromisso algum com qualquer forma de pecado e de egoísmo para abrir-se ao amor verdadeiro, sobrenatural e santo, que se torna realmente espelho de maternidade que Deus tem por toda criatura sua.
O sim de Maria
Maria, que realiza nela mesma as promessas de Deus a Israel, o veículo pelo qual se realiza a esperança messiânica, precisou aderir livremente a este projeto.
Quando falamos da Imaculada Conceição, ou seja, a antecipação da promessa messiânica na pessoa de Maria, que nasce sem nenhum contato com o pecado original, podemos perder de vista a sua adesão livre. Deus deu a ela tudo o que era necessário para realizar a sua missão, mas ela precisou topar a ideia.
E teve que topar muito no escuro. Os evangelhos são repletos de episódios nos quais Maria precisa refletir sobre as coisas em seu coração. É assim no próprio anúncio do anjo, ou quando ouve as palavras de Simeão no templo, ou ainda quando Jesus se perde em Jerusalém aos doze anos.
Estava colocada a possibilidade do não de Maria. Há quem acredite que, justamente pela sua concepção imaculada, esse não seria impossível, já que sem as trevas do pecado, ficaria óbvio que o melhor para ela é cumprir a vontade de Deus. Mas essa é uma visão limitadora da liberdade do homem.
Quantos de nós são qualificados por Deus para realizar uma missão, mas na hora H desistem? Reconhecer a possibilidade do não torna ainda mais meritório o sim. E sempre dizemos o sim sem certezas. Nunca temos certeza de nada, sempre resta uma sombra de dúvida. Lembremo-nos das dúvidas de João no domingo passado:
Mas, se o sim de Maria não é condicionado pela sua Imaculada Conceição, porque então Deus correu o risco de antecipar nela as promessas messiânicas que Jesus realizaria, sabendo que ela poderia dizer não e desperdiçar a graça oferecida?
Essa é a graça do mistério. Por um lado, não sabemos se Maria foi a primeira e única escolha de Deus. E nem temos como saber. Sabemos que ela disse sim, e isso resolve a possibilidade de outras terem dito não. Mas não podemos descartar a possibilidade de, em algum lugar da eternidade, outra pessoa estar olhando para as Glórias de Nossa Senhora e pensar “poderia ter sido eu”.
Mas também não podemos descartar o olhar de eternidade de Deus. Ele sabe o que esperar de nós. Já sabe o que pode acontecer depois de nossas decisões. Nós estamos em dúvidas, mas Ele consegue vislumbrar todas as 14 milhões de possibilidades que Doutor Estranho analisa antes de enfrentar Thanos, e outras mais que escaparam ao mestre das artes místicas do Universo Marvel. Nesta perspectiva, Ele sabe que só de Maria ele pode esperar esse sim.
Pensemos em Jonas. Por um lado, o não do profeta pode soar como uma recusa ao projeto de Deus. Jonas está na Palestina, é chamado para ir a leste, para Nínive, e vai a Oeste, ao mar Mediterrâneo, rumo a Társis, na atual Espanha. Mas mesmo esse não era uma possibilidade considerada por Deus. Era também importante que Jonas estivesse naquele navio, caísse em si durante a tempestade, e levasse os marinheiros à conversão. E, da barriga da baleia, Jonas sai mais convicto.
Nesta perspectiva, não há uma alma que tenha dito não para que Maria dissesse sim. A não ser que fosse esse o projeto de Deus, que precisaria daquele não para viabilizar o sim, para assim gerar os efeitos esperados nesta alma. Mas mesmo que o sim fosse já esperado por Deus, Ele certamente não induziu Maria a dizê-lo. Ela o disse, com todas as incertezas que envolviam essa decisão, e o fez livremente.
Os resultados do sim
Graças ao sim de Maria, foi possível o mergulho de Deus em nossa humanidade, na pessoa do menino Jesus. O seu sim tornou possível o Natal, a cruz, a Páscoa, os evangelhos, a expansão da Igreja, as reformas protestantes, as Grandes Navegações, o calendário moderno, a interjeição “Vixe Maria” e tantos outros fatos que se encadeiam na sequência histórica iniciada naquela tarde em Nazaré.
Estamos aqui neste espaço, escrevendo essas mal traçadas linhas, porque a minha viuda e a sua foram impactadas várias vezes por aquele sim. Não tivesse aquele fato ocorrido há vinte séculos, não sabemos sequer se estaríamos falando português no Brasil. O que os pescadores teriam encontrado em Guaratinguetá (será que existiria Guaratinguetá)?
Por isso, devemos muito ser gratos a Maria pelo seu sim. Voltar nossos corações a ela, e aprender de Nossa Senhora como perceber se é hora de dizer sim, ou de dizer não.
O Sim de Maria é que nos permite invocar sua proteção, rogando não a uma Juíza ou a uma Promotora mas, sim, a uma Advogada.