Pecadores privados condenam pecadores públicos
O discurso moralista nada mais é do que pessoas que cometem pecados graves em privado discriminando e perseguindo quem comete pecados públicos. Ou seja, hipocrisia
“Se a vossa justiça não for maior que a justiça dos mestres da Lei e dos fariseus, vós não entrareis no Reino dos Céus.” (Mateus 5,20)
A cena que descrevo agora é real: em uma missa, um padre pede orações pela alma de Marielle Franco, vereadora do Rio de Janeiro executada por criminosos. Imediatamente, uma pessoa o interrompe do meio da audiência: “você não vai falar de Marielle Franco, essa lésbica comunista, na igreja!”
A intervenção é um erro em vários níveis. Destaca-se, entre outras coisas, a incapacidade de se sentir compaixão por uma vítima de criminosos por conta de sua posição política ou sua orientação sexual. É como se a pessoa estivesse em pecado, e por isso sua morte não mereça as orações dos fiéis.
Que fique claro: todo filho de Deus merece ser respeitado e lembrado pela sua morte. Menos o Olavo de Carvalho, com ele pode zuar a morte à vontade.
Pecados públicos
Há pecados que são cometidos com testemunhas. Não tem como escondê-los. São pecados públicos. É o caso, por exemplo, do aborto. Nenhum católico fiel diria que o aborto não é pecado. Mas isso não deveria impedir um fiel de sentir compaixão por uma criança estuprada que engravida e não consegue ver outra saída que não o aborto legal.
Mas impede. A foto que ilustra este artigo mostra uma cambada de fanáticos nazistas usando a fé cristã para chamar uma criança, estuprada recorrentemente por parentes durante quatro anos, de assassina, na porta do hospital em que era realizado o avorto legal a que ela tinha direito. Esta criança deveria ter sido acolhida e protegida, antes que a gravidez se concretizasse, e mesmo depois, mas acabou sendo vítima de mais uma violência, desta vez em nome de Deus.
Condenar o pecado público é fácil. É a zona de conforto do moralista. É fácil apontar que “fulano é divorciado e está comungando”, ou “siclano fuma maconha”. Aquele que não comete pecados públicos se sente empoderado para atacar os outros que estão expostos ao julgamento moral.
Pecados privados
Mas quem garante que esse moralista esteja livre de pecados? Quantos pregadores conhecidos pelo rigor moral de suas denúncias foram depois pegos em escândalos de abusos, consumo de pornografia infantil, roubo de dinheiro das comunidades, entre outros?
O pecado é parte da nossa condição humana. Mesmo o mais místico do santos é um pecado contumaz. Como lembra Santa Teresa:
“fui tão ruim que não achei santo, dos que se voltaram para Deus, com quem me consolar. Porque vejo que, depois que o Senhor os chamava, não tornava a ofendê-lo. Eu não só tornava a ser pior, como parece que me forçava a resistir às dádivas que Sua Majestade me fazia” (Livro da Vida, Introdução)
Por isso desconfie dos moralistas. Aquele que é rápido em condenar os pecados públicos, menos os veniais ou que estão provocados por condições que restringem a liberdade do sujeito, provavelmente esconde dentro de si as sombras mais tenebrosas. O fruto da verdadeira espiritualidade é o amor, a compaixão, o acolhimento, não a superioridade moral.
Perdoar e perdoar-se
A luta contra o pecado é diária, e não se faz com uma repressão de si mesmo. Ela se dá no reconhecimento da própria condição, no ato de perdoar e, principalmente, perdoar-se pela própria vulnerabilidade.
E cada ser humano está mais ou menos vulnerável a pecados mais ou menos graves, cada um de acordo com a sua vocação pensada nos planos de Deus. Não há mais méritos na pessoa apenas porque ela consegue viver uma espiritualidade mais profunda, há apenas mais responsabilidade. Como lembra Santo Agostinho:
“Ao mesmo Espírito de Deus se referia [o apóstolo Paulo] ao dizer ‘Mas isso tudo é o único e mesmo Espírito que o realiza, distribuindo a cada um perante os seus dons, conforme lhe apraz’ (1º Corintios 12,11). No conteúdo deste ‘isso tudo’, mencionou também a fé, como sabeis.” (A Graça II, A Predestinação dos Santos, Capítulo XI)
Aquele que consegue se tornar um líder de comunidade deve dar graças a Deus por isso, e buscar assumir as responsabilidades que essa possibilidade lhe traz para a realização dos planos de Deus. E isso envolve reconhecer as próprias vuonerabilidades, muitas delas secretas, perdoar-se, e nos próprios pecados ser empático aos pecados alheios.
Aquele que, como eu, não se sente à vontade em uma paróquia, especialmente em tempos de perseguição ideológica, também deve dar graças a Deus, e entender que este sentimento de desencaixe também atende a um projeto divino, também é vontade de Deus. Ou eu estaria escrevendo isso aqui se estivesse confortável e satisfeito em uma pastoral?
Por outro lado, quem ignora a sua própria vulnerabilidade e vive de apontar os pecados públicos alheios não passa de um hipócrita. Você não é obrigado a concordar com o estilo de vida de quem você discorda, mas não lhe cabe julgar o que se passa na alma deste ou daquele.
Afinal, como conclui o evangelho deste domingo:
“tu não podes tornar branco ou preto um só fio de cabelo” (Mateus 5,36)
Pecadores privados condenam pecadores públicos
Esses pecadores "privados" são seres tenebrosos. Não precisam de um bom Confessor, senão de um exímio Exorcista.