Precisamos resgatar a dignidade das crianças
No dia dos Santos Inocentes, assassinados por Herodes, refletimos sobre a visão cristã da dignidade das crianças, e nosso dever de protegê-las da miséria e da fome em nosso tempo.
Em 28 de dezembro, três dias depois do Natal, a Igreja celebra a memória dos Santos Inocentes. Tratam-se das crianças com menos de dois anos assassinadas por Herodes, em sua tentativa de desta forma evitar a ascensão do Messias.
O episódio, narrado no evangelho de Mateus, serve como demonstração da impiedade do tirano, capaz de uma chacina de crianças para preservar o seu poder. No contexto da celebração do Natal, ele ajudou a construir a visão cristã da dignidade da criança, como sujeito de direitos e que deve ser protegida.
A imagem que ilustra este artigo, do corpo de Aylan Kurdi na praia, morto após um naufrágio de refugiados que fugiam da Guerra na Síria, tem servido para mim todos os anos como um sinal de que a mensagem deixada pelos Santos Inocentes com seu martírio ainda precisa ser ouvida. Dois mil anos depois, crianças ainda são vítimas dos jogos de poder dos adultos.
Um panorama histórico da dignidade da criança
Foi no decorrer da Idade Média que se desenvolveu uma visão positiva da infância. De acordo com o trabalho do historiador Colin Heywood, Uma História da Infância: da Idade Média à Época Contemporânea no Ocidente, no começo da Idade Média a criança é vista como algo impuro, imerso em pecado, mas essa visão vai sendo substituída por uma abordagem mais favorável ao longo do tempo.
Contribuem neste processo as crises que afetam a saúde e a segurança das crianças. Um dos períodos em que avança uma visão da infância como algo a ser protegido é a epidemia da Peste Negra na Europa no final da Idade Média. Outra época relevante é o período da Revolução Industrial, quando o trabalho infantil assume proporções tais que leva a campanhas para tirar as crianças das fábricas e levá-llas às escolas.
Jacques Le Goff, historiador especializado em Idade Média, afirma, em O Deus da Idade Média:
O amor dos pais e, em particular, o amor materno, existiam na Idade Média. O que evoluiu foi o lugar simbólico da criança. Houve uma extraordinária promoção da criança.
Le Goff, nesta mesma entrevista a Jean-Luc Pouthier, relaciona esta valorização da criança ao avanço da devoção à Virgem Maria e, por associação, ao Menino Jesus.
O tema que se espalha é o da Virgem, com seu manto protetor. À medida que as necessidades se intensificam na sociedade, que as reivindicações se multiplicam, os homens e a mulheres têm necessidade de uma extensão, de uma diversificação das manifestações de Deus.
Ou seja, a cada crise, que expõe a humanidade à experiência da crueldade que é o sofrimento e a morte de crianças, a humanidade, iluminada pelo evangelho, voltou-se ao cuidado e a valorização da infância e seus direitos.
Mais recentemente, no Brasil, temos a criação da Pastoral da Criança, uma iniciativa liderada pela médica pediatra Zilda Arns, com objetivo de promover o cuidado à infância, especialmente das crianças vulneráveis. A Pastoral tem promovido práticas nutricionais e campanhas de saúde pública por todo o país nos últimos quarenta anos. Zilda Arns, que morreu em 2010 durante um terremoto no Haiti, está em processo de canonização.
O desafio de valorizar a infância integralmente
Atualmente nos meios católicos se dá muito destaque à causa do combate ao aborto. Contudo, muitos desses cristãos valorosos ignoram completamente a criança depois que nasce. O que a festa dos Santos Inocentes nos lembra é que ser a favor da vida significa defendê-la integralmente, não apenas no ciclo entre a fecundação e o nascimento.
Olhemos para o Brasil. O estudo Desigualdades e impactos da covid-19 na atenção à primeira infância, da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, em parceria com o Itaú Social e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), apontou:
A mortalidade materna cresceu 89,3% em todo o país. São 113,6 óbitos de mães a cada 100 mil nascidos vivos em 2021;
A cobertura vacinal das crianças caiu de forma generalizada;
As matrículas na pré-escola caíram 83,7%, o que representou 315 mil matrículas a menos de 2019 a 2021;
O número de crianças muito abaixo do peso aumentou 54,5% entre março de 2020 e novembro de 2021, o correspondente a 324 mil crianças de até 5 anos incompletos.
Por trás desses números, há crianças reais, sofrendo danos permanentes por conta da subnutrição, da insegurança alimentar, e da vulnerabilidade social e familiar. São crianças que precisam ser acolhidas e cuidadas. São novas vítimas de Herodes em nosso tempo.
Neste dia dos Santos Inocentes, é nosso dever e nossa salvação agir, ainda que dentro de nossas limitações, para enfrentar este desafio.
Não somente isso, mas também as crianças expostas pelos influencers dos dias atuais. Chegará o dia do acerto de contas, em que essas crianças ficarão adultas e perguntarão : qual era o seu direito de expor a minha vida na internet?