Quaresma: tempo de penitência?
Nos 40 dias após o Carnaval, as comunidades serão tomnadas por discursos em defesa do jejum e da penitência. Mas qual o verdadeiro sentido disso?
Escrevo essas linhas durante o Carnaval, pensando que está chegando a Quarta-feira de Cinzas e vai começar a Quaresma. Em várias comunidades haverá meditações, sermões e catequeses sobre o papel da penitência. E há uma longa tradição na literatura espiritual na defesa da penitência e da mortificação como um caminho de se aproximar de Deus.
E eu sempre me pergunto se é isso mesmo que Deus espera de nós. Pelo contrário, o mandamento fundamental, reafirmado por Jesus na Santa Ceia, é “amai-vos uns aos outros” (João 15,12). Muitas vezes, o peso que se dá à penitência, à cruz e à mortificação parece superior ao mandamento do amor em muitos sermões.
Nesta reflexão, que abre nossa série sobre a Quaresma, procuro analisar qual o verdadeiro lugar da penitência na vida espiritual cristã, e reflito por que se dá um peso tão grande a este elemento da ascese, especialmente nesta época do ano.
Razões dadas para promover a prática da penitência
Em geral, a literatura espiritual e os sermões apresentam três razões principais para justificar a prática da penitência. Vamos analisar cada uma delas, e depois entender à luz do Evangelho e do que conhecemos hoje sobre o ser humano se essas razões se justificam. As três razões são:
Penitência como purifcação dos pecados;
Penitência como um treino para as tribulações;
Penitência como um ato de amor.
Penitência como purificação dos pecados
Na Imitação de Cristo, um texto anônimo do final da Idade Média, atribuído recentemente ao místico alemão Thomas de Kempis, já afirmava que os sofrimentos neste mundo, vividos de forma pacientes, aliviariam a alma das penas no julgamento futuro:
“Grande e salutar purgatório tem nesta vida o homem paciente: se, injuriado, mais se dói da maldade alheia, que da ofensa própria; se, de boa vontade, roga por seus adversários, e de todo o coração perdoa os agravos; se não tarda em pedir perdão aos outros; se mais facilmente se compadece do que se irrita; se constantemente faz violência a si mesmo, e se esforça por submeter de todo a carne ao espírito. Melhor é expiar já os pecados e extirpar os vícios, que adiar a expiação para mais tarde”. (grifo nosso)
Por esta perspectiva, sofrer nesta vida encurtaria o tempo de purgatório. É uma visão do homem como um ser já condenado, um criminoso a vagar pelo mundo, à espera de sua cadeia. Assim como o Direito Penal prevê que o tempo cumprido em prisão preventiva pode ser descontado da pena estabelecida na sentença, aquilo que a Imitação de Cristo chamava de “violência contra si mesmo” reduziria a pena inevitável na vida eterna.
Penitência como um treino para as tribulações
Ainda na Imitação de Cristo, a penitência e os sofrimentos aparecem como uma oportunidade de “domar a carne”, fazendo com que ela se submeta ao espírito. Vamos ao texto:
“Quanto mais te apartares do prazer que encontras nas criaturas, tanto mais suaves e eficazes consolações em mim acharás. Não o conseguirás, a princípio, sem alguma tristeza e trabalho na peleja; opor-se-á o costume inveterado, mas será vencido por outro melhor. Revoltar-se-á a carne, mas o fervor de espírito lhe porá freio.” (grifo nosso)
Novamente, aparece aqui aquela visão pessimista do ser humano. Com sua natural inclinação para o mal, o homem é um ser dominado pela carne mortal, e que precisa ser treinado, condicionado, para enfim viver a vida do espírito.
Um pouco antes, o autor da Imitação de Cristo apresenta o mundo como um lugar de sofrimentos. Nesta perspectiva, a penitencia também serviria para preparar a alma para lidar com as maiores dificuldades.
Além disso, seria a penitência um exercício de obediência, tida como uma das maiores virtudes:
Grande coisa é viver na obediência, sob a direção de um superior, e não dispor da própria vontade. Muito mais seguro é obedecer que mandar.
Diante desta perspectiva, deveria o fiel obedecer a Deus, e a seus superiores, e a carne deveria obedecer ao espírito. A penitência, enquanto um sofrimento sem sentido auto-infligido, serviria assim como um treinamento para a obediência.
Penitência como um ato de amor
Por fim, seria a própria penitência, em si mesma, um ato de amor a Deus. Como no Romantismo do século XIX, em que o amor e o sofrimento são irmãos - temos “Os Sofrimentos do Jovem Werther”, de Goethe, o “Amor de Perdição”, de Camilo Castelo Branco, entre outros - neste visão da espiritualidade deve o cristão sofrer por amor. Voltamos à Imitação de Cristo:
Jesus: Filho, não és ainda forte nem prudente no amor. – A alma: Por que, Senhor? – Jesus: Porque por qualquer contrariedade deixas o começado e com ânsia excessiva procuras a consolação. O homem forte no amor permanece firme nas tentações e não dá crédito às astuciosas sugestões do inimigo. Assim como lhe agrado na prosperidade, não lhe desagrado nas tribulações. (Grifo nosso)
O que é curioso no trecho acima é que o amor a Deus não se manifesta em atos de amor. Pensemos, para ficarmos em uma literatura que as comunidades católicas estão acostumadas, nas cinco linguagem do amor, que andaram fazendo algum sucesso recentemente.
Aqui o amor a Deus não ne manifesta em palavras de afirmação, tempo de qualidade, toque físico, atos de serviço ou presentes. Ou seja, o amor não se manifesta na oração vocal, na contemplação e presença de Deus, em ter e manter por perto relíquias e imagens, no serviço à Igreja ou aos pobres ou no dízimo ou ofertas. Nesta visão, o amor se manifestaria em uma espécie de masoquismo.
Refutação às razões para se fazer penitência
Não estou aqui para refutar ou condenar a Imitação de Cristo, um livro que é muito maior do que as menções feitas acima, e que tanto bem tem feito para tantas pessoas. Usei-o pela simples razão de que argumentos como os que citamos estão presentes em sermões e direções espirituais mesmo em nossos tempos, mesmo após Kant, Freud e a ressonância magnética.
Para uma pessoa do final da Idade Média, a visão apresentada na Imitação de Cristo fazia sentido. A visão de mundo daquele período era derivada de um cristianismo que bebeu muito da filosofia grega tardia. Em especial, a ascese, que nasce nos mosteiros, se forma a partir de um diálogo entre cristianismo e estoicismo.
A visão do homem que surge neste diálogo é a de um ser dominado pela “concupiscência”, entendida como a condição animal do homem. Assim afirma o filósofo Pascal, que viveu dois século depois d’A Imitação de Cristo, em seus Pensamentos:
“Vossas enfermidades principais são o orgulho, que vos subtrai de Deus, e a concupiscência, que vos liga à terra” (Grifo nosso)
O que pretendo é provocar uma reflexão alternativa: a penitência pode não ter nada a ver com os objetivos que a ela são relacionados na literatura espiritual produzida até aqui. Pelo contrário, pode ser que o papel da penitência nas virtudes heróicas dos santos que nos antecederam tenha sido superestimado, e ela seja muito mais um efeito colateral que o centro da relação dessas pessoas com Deus.
Muitas vezes a lente pela qual observamos os fatos enviesam nossa análise, fazendo com que supervalorizemos determinados aspectos e subvalorizemos outros. Ao ver que os santos eram pacientes na adversidade, os autores espirituais podem ter concluído que esta paciência “penitente” e “mortificada” seja a causa, e não a consequência, de sua vida espiritual. E, assim, os sermões talvez estejam ensinando penitência a quem já tem vida espiritual profunda, como quem tenta ensinar um pássaro a voar.
Purificação dos pecados?
Aqui o argumento é puramente teológico: todo pecado e toda culpa foi purificada no sacrifício da cruz. Como afirma João Paulo II em sua primeira encíclica, Redemptoris Hominis:
No mistério da Redenção o homem é novamente “reproduzido” e, de algum modo, é novamente criado. Ele é novamente criado! “Não há judeu nem gentio, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher: todos vós sois um só em Cristo Jesus”. (…) Que grande valor deve ter o homem aos olhos do Criador, se “mereceu ter um tal e tão grande Redentor”, se “Deus deu o seu Filho”, para que ele, o homem, “não pereça, mas tenha a vida eterna”.
O perdão e a comutação das penas dos pecados não deriva de um esforço humano, mas sim da ação redentora de Cristo. Pelo contrário, no século V a crença de que o homem poderia livrar-se do pecado pelo seu próprio esforço foi condenada como heresia, o Pelagianismo.
Evidentemente, cada pessoa deve travar a sua luta para se tornar alguém melhor. Essa luta, contudo, não se dá na autosujeição e na autorrepressão, mas na compreensão de sua própria vulnerabilidade, no perdoar-se a si próprio.
Treino para as tribulações?
Há algunms anos fez muito sucesso um livro, resultado de anos de estudo da psicóloga Carol Dweck, chamado Mindset. Carol procurava entender porque diante das dificuldades algumas pessoas sucumbiam enquanto outras cresciam e as enfrentavam.
A sua grande descoberta foi que a diferença entre os dois perfis estava na forma como cada um enfrentava as dificuldades:
As pessoas de mindset fixo acreditavam que eram incapazes de aprender e desenvolver novas habilidades, logo o fracasso era uma comprovação de sua incapacidade pessoal.
Já as de mindset de crescimento entendiam que eram capazes de aprender e superar desafios. Ou seja, para elas, o fracasso era uma informação sobre como não fazer, algo a ser estudado para ser corrigido ao se tentar novamente.
Feita essa classificação, Carol Dweck tentou entender como os mindsets se formavam. E sua grande descoberta era que os mindsets de crescimento surgiam de ambientes educacionais nos quais havia a combinação de um alto nível de exigência com o estímulo à superação dos desafios.
Um exemplo é um colégio de periferia no qual as crianças eram apresentadas a Shakespeare desde o primeiro momento. Quem via de fora achava um absurdo submeter aqueles alunos, que vinham com sérias deficiências de formação, a textos tão complexos. Mas naquela escola as crianças não eram apenas obrigadas a ler Shakespeare, elas eram estimuladas a acreditar que conseguiriam ler Shakespeare.
Trazendo para o nosso debate aqui, o que tiramos é que não é a submissão a níveis crescentes de autorestrição que tornam uma pessoa mais ou menos preparada para lidar com as tribulações. Elas precisam ser levadas a acreditar que são capazes de superar uma tribulação.
Quando olhamos a história dos santos mártires, vemos que todos eles têm em comum a crença de que Cristo venceu a morte, e que aquele sofrimento não é nada perto da glória que terão junto a Ele. É essa crença que os faz suportar as dificuldades:
“No mundo haveis de ter aflições. Coragem! Eu venci o mundo.” (João 16,33)
Ato de amor?
Nessa perspectiva, não se demonstra amor a Deus fazendo penitência, mas fazendo a Sua Vontade e enfrendo os desafios que isso envolve. A demonstração de amor não está na violência contra si próprio, mas na busca por estar junto a Ele. É aí que está o verdadeiro ato de amor.
E o amor a Deus se manifesta no amor às pessoas. Como lembra São João:
“Se alguém disser: “Amo a Deus”, mas odeia seu irmão, é mentiroso. Porque aquele que não ama seu irmão, a quem vê, é incapaz de amar a Deus, a quem não vê.” (1ª Carta de João 4, 20)
Talvez aqui esteja a melhor penitência: em acolher o outro, em abraçá-lo em suas dificuldades, vendo nele a imagem de Jesus.
Como viver a Quaresma, afinal?
Nesta perspectiva, eu me atrevo a dizer que, pelo menos de minha parte, não farei penitências na Quaresma. Prefiro retomar os pontos acima, e encarar este período de outras formas:
Meditando sobre o mistério da Redenção;
Pedindo ao Espírito Santo que me faça crer que é possível superar as dificuldades e desafios que a vida me traz;
Procurando demonstrar o meu amor a Deus da forma como me for possível.
Nada desse papo de atrasar copo d’água, desligar redes sociais, ou mesmo fazer abstinência de determinadas comidas e bebidas. É melhor se dedicar a aplacar o sofrimento dos outros que submeter a si mesmo a penitências desnecessárias. Fora que, provavelmente, quem promove essas práticas está disposto a adotar outros comportamentos abusivos.
Viver bem a Quaresma está em perdoar a todos e também em pedir perdão a todos. Todo o resto é muito pouco perto do que nosso Jesus espera de todos. Lembrem-se: perdoar para ser perdoado. Caso contrário não há como viver a Páscoa e tudo isso não passaria de uma grande farsa, como infelizmente acontece com muitos neofariseus.