Um adeus a Bento XVI
Morreu na manhã do último dia do ano o papa emérito Bento XVI, aos 95 anos. Agora ele finalmente vê Deus face a face.
Bento XVI se foi, bagunçando novamente a pauta deste escriba. Estava preparando uma reflexão sobre recomeços e perdão para o último dia do ano, quando recebi a notícia de que ele se foi.
Este texto não se pretende tão profundo quanto a reflexão sobre sua teologia, que produzi essa semana quando o papa Francisco anunciou que Bento XVI se encontrava bastante doente. É mais um apontamento às pressas do que ele significou para a Igreja.
Joseph Ratzinger nasceu em 16 de abril de 1927, em um sábado de Aleluia. Na sua primeira entrevista dada ao jornalista alemão Peter Sewald - O Sal da Terra - ele afirma que isso não foi coincidência:
Julgo que é um dia muito bom, que sugere a minha concepção da História e a minha própria situação: à porta da Páscoa, sem todavia ter entrado ainda.
Ordenado padre após a Segunda Guerra Mundial, realizou suas primeiras pesquisas teológicas dentro do espírito de renovação que se espalhava nas faculdades teológicas alemãs. Fez parte deste movimento, e por conta de suas teses sobre a Revelação tornou-se consultor do Concílio Vaticano II, onde participou ativamente da redação da Constituição Dogmática Dei Verbum.
Contudo, após o concílio fica incomodado com o radicalismo. Especialmente, incomoda-o a crescente influência do marxismo na teologia. Decide, então, conduzir um movimento de atualização conservadora da teologia, em diálogo com a modernidade, mas sempre procurando reforçar os dogmas da fé.
Esta virada coincidiu com um crescimento profissional dentro da hierarquia da Igreja. Paulo VI tornou-o arcebispo e cardeal, João Paulo II o tornou o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, onde teve que enfrentar debates. Andrea Tornielli, em sua biografia O Guardião da Fé, lista alguns:
se é licito ser cristão e maçom (decidiu que não era, ou seja, tem muito católico no interior do Brasil em pecado);
se é licita a Teologia da Libertação (decidiu que apenas a teologia inspirada em Marx era ilícita, alguém precisa avisar isso ao padre que posa para fotos com um rifle);
se divorciados podem comungar (decidiu que não, o que complica a vida de alguns políticos que dizem governar em nome de Deus);
se homossexualidade é pecado (decidiu que sim, para tristeza de muito padre tradicionalista);
se cristão pode fazer ioga (sim, isso foi discutido pela Congregação para a Doutrina da Fé, uma demonstração de que havia muito tempo livre no Vaticano. Ratzinger provou com seus 95 anos que cerveja contribui mais para a longevidade que exercícios).
Foi por essa atuação que Bento XVI foi acolhido pelos conservadores e tradicionalistas como um dos seus. Contudo, a igreja de Ratzinger sempre foi a do “pequeno rebanho”, que, cercado pela secularidade, permanece fiel à ortodoxia. Seus aliados conservadores querem a restauração do Sacro Império, gostam de coturnos e de governos em nome de Deus, governos imbrocháveis.
Se na teologia dogmática Ratzinger lançou as bases do entendimento futuro sobre a fé católica, descrita agora conforme os termos do pensamento contemporâneo, na pastoral ele foi responsável por alguns atrasos cruciais na recepção das novas realidades sociais dentro da Igreja.
O católico hoje não vive há muito tempo naquilo que Kierkegaard chamava de Cristandade, ou seja, uma sociabilidade e uma cultura totalmente determinada por uma visão de mundo cristã. Por isso, precisa estar aberto ao acolhimento e à interação de divorciados, LGBTQIA+, famílias não tradicionais e várias outras realidades que saem do estreótipo tradicionalista.
Mas demos o braço à torcer: entre os cardeais candidatos a papa em 2005, os mais tradicionalistas teriam promovido uma cruzada reacionária ainda mais radical, com danos maiores ao povo cristão. Teríamos a igreja dos sonhos daqueles que vendem cursos falando que a Teologia da Libertação está debaixo da sua cama e vai puxar a sua perna. Uma igreja vazia e estéril.
Bento XVI, pelo contrário, soube proteger pessoas como o arcebispo de Buenos Aires Jorge Bergoglio, atual papa Francisco, vítima de perseguição dos conservadores do Vaticano. Também não dourou a pílula no tema dos abusadores de crianças, embora sua resposta jurídica e pastoral aos escândalos tenha sido insuficiente.
De certa forma, Francisco é a verdadeira materialização pastoral da teologia de Bento XVI. O projeto teológico de diálogo com a modernidade do alemão se manifesta no cuidado pastoral do argentino.
Por isso, apesar do fandom de Ratzinger, devemos agradecer ao Espírito Santo pelo seu papado. Neste momento, enquanto rezamos pela sua alma, ele deve finalmente estar vendo Deus face a face, algo que sempre buscou em sua vida e obra.
Bento XVI, requiescat in pace!
Tive o privilégio de conhecer o Papa Bento pessoalmente e também de fazer aniversário do mesmo dia dele. Acredito que um tema importante seja o da sua renúncia ao Papado, da sua humildade e da mensagem que nos tentou passar. Creio que o Ministério Petrino deveria ser exercido sempre por um jovem, tal qual eram Pedro e os Apóstolos. Fica difícil pensar em Cristo confiando a pedra angular da sua Igreja a anciãos.