Uma introdução à teologia de Bento XVI
Joseph Ratzinger, o principal teólogo dogmático de nosso tempo, é provavelmente também o autor católico menos compreendido
A espiritualidade deste autor e sua visão do catolicismo é essencialmente ratzingeriana. E é por causa dela que este autor é também antifascista e próximo a Teologia da Libertação. Os apologetas que dizem defender o legado do papa alemão, por sua vez, são os menos alinhados à sua teologia em todo o mundo católico.
Escrevo este artigo no final de 2022, quando a Igreja reza pela saúde de Bento XVI, a pedido de seu sucessor. O papa emérito pode nos deixar a qualquer momento, e por isso faz sentido propor uma apresentação introdutória do que vem a ser a sua teologia.
Com o pedido de oração feito por Francisco, o papa emérito também se livrou de uma bordoada neste espaço. Este autor estava preparando para o dia da Sagrada Família uma reflexão sobre como o tema da família, tal como proposto por João Paulo II e Bento XVI, foi capturado e inserido na agenda integrista e conservadora das organizações fascistas e supremacistas mundo afora. Mas, neste contexto, achei de bom tom adiar este artigo.
Sim, este autor costuma criticar os seus herois. Se você está aqui, já deve ter lido minha homenagem ao padre Jonas Abib.
Mas vamos à teologia de Bento XVI.
Recomendo fortemente a quem se interesse em usar o navio do catolicismo para navegar os mares turbulentos da modernidade que use a teologia dogmática de Bento XVI como um ponto de partida.
Para isso, este artigo se propõe a apresentar o que, em minha leitura pessoal, são os principais eixos de leitura da teologia ratzingerziana. Desta forma, o leitor que porventura tiver a coragem de enfrentar o raciocínio tipicamente alemão do papa - todo texto filosófico alemão traduzido para o português se mostra árduo à leitura, o que dificulta ao leitor comum acessar toda a sua profundidade; mas sempre vale a pena: tanto quanto uma música do Scorpions.
E a primeira coisa que um leitor deve saber é que Ratzinger é um teológo da dogmática. Não um dogmático, no sentido de alguém que não suporta a crítica, mas sua disciplina teológica é a dogmática, ou seja, o estudo da doutrina cristã. O seu principal trabalho teológico, Introdução ao Cristianismo, é uma análise ponto a ponto do Credo, do símbolo apostólico.
E, mais do que isso, o seu trabalho é relevante porque influencia o Magistério dos séculos XX e XXI. A Constituição Dogmática Dei Verbum, do Concílio Vaticano II, recebeu uma contribuição chave da teologia da revelação de Ratzinger, que inclusive trabalhou na sua redação. O Catecismo da Igreja Católica foi sistematizado sob sua coordenação, e traz também a marca de sua teologia. E, crucial, nenhum papa antes tinha uma obra sobre dogmática tão profunda e vasta.
Por isso, dificilmente se fará teologia dogmática nas próximas décadas sem pelo menos tropeçar em alguma contribuição da obra de Ratzinger.
Uma teologia em diálogo com a modernidade
E aí vem a primeira chave de leitura da teologia de Bento XVI: ela é essencialmente moderna. O esforço teológico do papa foi de reescrever a doutrina cristã em uma gramática filosófica pós iluminista. Por isso, ele estabelece um diálogo franco e frutífero com o pensamento contemporâneo.
Só em uma encíclica de Bento XVI é possível encontrar uma citação não crítica a Nietzsche, como em Deus Caritas Est:
Segundo Friedrich Nietzsche, o cristianismo teria dado veneno a beber ao eros, que, embora não tivesse morrido, daí teria recebido o impulso para degenerar em vício. Este filósofo alemão exprimia assim uma sensação muito generalizada: com os seus mandamentos e proibições, a Igreja não nos torna porventura amarga a coisa mais bela da vida? Porventura não assinala ela proibições precisamente onde a alegria, preparada para nós pelo Criador, nos oferece uma felicidade que nos faz pressentir algo do Divino?
E, na sequência, o raciocínio do papa emérito nos leva a um ponto surpreendente, de certa forma concordando, embora não dê o braço a torcer, com o filósofo da morte de Deus. Para Bento XVI, a negação da corporeidade é um erro, assim como a sua supervalorização, e a crítica do filósofo é importante para revalorizar o lugar do corpo em relação à alma na antropologia (entendida aqui como uma filosofia do homem) cristã.
Da mesma forma, há em Ratzinger, tanto em sua obra teológica quanto em seu magistério, diálogos com outras frentes do pensamento contemporâneo. Em Dogma e Anúncio, por exemplo, há um ensaio sobre o evolucionismo de Darwin que, inspirado na teologia evolucionista de Teilhard de Chardin, conclui:
Dever-se ia lembrar que também a criação do homem não siognifica um começo distante, mas em ser Adão estenda a cada um de nós: cada homem se refere diretamente a Deus. A fé não afirma mais quanto ao primeiro homem do que quanto a cada um de nós e vice-versa, quanto a nós não afirma menos do que quanto a primeiro homem. Cada homem é mais do que o produto da massa hereditária e do ambiente, nenhum resulta só de fatores intramundanos que podem ser calculados; o mistério da criação envolve a cada um de nós.
Ou seja, ele incorpora em sua visão do homem como criatura de Deus a concepção evoluncionista, e insere a ação criadora de Deus dentro desta dinâmica, como um algo a mais não calculável, como um mistério. Isso está muito distante das concepções fundamentalistas do design inteligente, por exemplo.
Tanto em sua interlocução intelectual com Nietzsche quanto na com Darwin, transparence seu esforço reflexivo em não negar o valor do pensador contemporâneo, em sua crítica secular, mas em incorporá-lo e utilizá-lo para iluminar aspectos da nossa fé. E isto aparece no diálogo strictu senso que teve com Habermas, na Academia Católica da Baviera.
Neste diálogo, o filósofo Jurgen Habermas, que desde sua Teoria do Agir Comunicativo tem se dedicado a analisar o espaço público, faz um gesto em relação ao então cardeal. Após reivindicar uma visão “não religiosa e pós metafísica” do estado democrático, conclui:
Cidadãos secularizados, enquanto se apresentarem nos seus papéis de cidadãos, não devem negar, fundamentalmente, um potencial de verdade a visões de mundo religiosas nem colocar em questão o direito dos concidadãos crentes de contribuir, por meio de uma linguagem religiosa, para com discussões públicas. Uma cultura politicamente liberal pode esperar até mesmo dos seus cidadãos secularizados que tomem parte dos esforços em traduzir contribuições relevantes da linguagem religiosa para uma linguagem que seja publicamente acessível.
Ratzinger, que faz sua apresentação após a palestra de Habermas, estabelece em seu diálogo conclusões surpreendentes para quem esperava uma afirmação da supremacia da fé sobre a razão. Ele analisa as relações entre o poder e o direito (em linhas que retomaria em 2011 em seu discurso no Reichstag):
A questão de que o direito não deve ser um instrumento de poder de poucos, mas a expressão do interesse comum a todos, parece resolvido, pelo menos pelos instrumentos de formação democrática da vontade. Apesar disso, me parece, permanece ainda uma pergunta.
Na sequência, ele reflete se a razão deve tutelar a religião ou se a religião deve tutelar a razão. E aí, se por um lado a bomba atômica é citada como um exemplo de que a razão sem a fé pode ser perigosa, o terrorismo fundamentalista serve como contra-exemplo do perigo da religião sem a razão. Conclui Ratzinger, portanto, pela defesa dos duplos limites, com a fé e a razão limitando-se mutuamente:
Eu falaria de uma necessária correlação entre razão e fé, entre razão e religião, as quais são convocadas para uma purificação e salvação recíproca, que se carecem mutuamente e que precisam reconhecer isso.
Essa correlação entre razão e fé está no centro de sua teologia, não só como método, mas também como projeto. E, por isso, é tão importante para Ratzinger o tema da Revelação.
A Revelação como um processo contínuo e histórico
Andreas Englisch, um jornalista alemão que cobre o Vaticano, conta um episódio curioso sobre Bento XVI em seu livro O Homem que Não Queria ser Papa. Em 2010, ele realizou uma viagem apostólica à Inglaterra, para a beatificação do cardeal John Henry Newmann, um clérigo e teólogo anglicano do século XIX que se converteu ao catolicismo.
Englisch achava a viagem um erro, e queria entender quem estaria por trás da idéia. Era um período de muitas polêmicas em seu papado, por onta das denúncias de abusos sexuais de menores por padres em todo o mundo. Ainda por cima, o papa decidiu acolher padres anglicanos dissidentes, o que o colocava em rota de colisão com a Igreja Anglicana. Beatificar um dissidente anglicano notório em pleno território inglês neste contexto seria um erro político de enormes proporções, na sua avaliação
O jornalista decide então investigar quem era a pessoa poderosa no Vaticano que queria muito esta viagem. Em sua investigação, Englisch descobriu que havia realmente uma pessoa muito interessada na presença do papa nesta beatificação:
Existe realmente alguém que há anos trabalha com Henry Newmann, e que está por trás do projeto, e você estava certo, o projeto foi feito por alguém muito influente no Vaticano: Joseph Ratzinger.
A principal obra do cardeal Newmann, e a sua última antes da conversão ao catolicismo, é Ensaio sobre o Desenvolvimento da Doutrina Cristã. Neste trabalho, ele desenvolve uma visão da fé como algo que se desenvolve no decorrer da História, e vai lançando luz sobre novos aspectos da verdade revelada nos evangelhos.
E a Revelação é justamente o tema do doutorado de Ratzinger, sobre São Boaventura. Em O Sal da Terra, Ratzinger expressa sua tese em termos similares aos do cardeal Newmann:
Se a fé cristã está ligada a uma revelação que se completou há muito, não está então condenada a se manter voltada para trás e a prender o Homem a um tempo passado? Pode então a fé acompanhar a evolução da História, e tem ainda alguma coisa a dizer? Não deve envelhecer pouco a pouco e acabar por ser completamente irrealista? São Boaventura respondeu, ao salientar fortemente a relação entre Cristo e o Espírito Santo segundo o Evangelho de São João: a palavra histórica da revelação é definitiva, mas é inesgotável e revela sempre novas profundidades. Assim, o Espírito Santo fala como intérprete de Cristo, com a sua palavra, em todas as épocas, e tem sempre algo de novo a dizer.
Esta visão da Revelação como algo ao mesmo tempo antigo e novo está presente na Constituição Dei Verbum, do Concílio Vaticano II, em cuja redação Ratzinger trabalhou diretamente:
Esta tradição apostólica progride na Igreja sob a assistência do Espírito Santo. Com efeito, progride a percepção tanto das coisas como das palavras transmitidas, quer mercê da contemplação e estudo dos crentes, que as meditam no seu coração (cfr. Lc. 2, 19. 51), quer mercê da íntima inteligência que experimentam das coisas espirituais, quer mercê da pregação daqueles que, com a sucessão do episcopado, receberam o carisma da verdade. Isto é, a Igreja, no decurso dos séculos, tende contìnuamente para a plenitude da verdade divina, até que nela se realizem as palavras de Deus.
Mas esse desenvolvimento da compreensão da Revelação no decorrer do tempo não é algo simplesmente aleatório, nem um processo no qual as novas leituras descartam inteiramente as velhas. Para Bento XVI, a própria sequência de épocas históricas que desencadeia determinadas leituras do Evangelho é disposta por Deus para conduzir o entendimento humano em determinada direção.
Em Fé, Verdade e Tolerância, ele avalia assim a questão da interlocução entre fé cristã e filosofia grega, respondendo aos críticos que veem na influência helênica sobre a doutrina uma deturpação pagã:
O característico da filosofia grega era que não se contentava com as religiões tradicionais nem com as imagens do mito, mas levantava com toda a seriedade a questão da verdade. E já neste lugar podemos quiçá ver o dedo da Providência: porque o encontro entre a fé da Bíblia e a filosofia grega foi verdadeiramente “providencial”.
Ou seja: volta aqui a mesma questão da condução misteriosa de Deus dos assuntos humanos no decorrer da História, a mesma que ele identificou no diálogo com Darwin que mencionamos acima. Para Ratzinger, Deus conduz os homens no meio da história por caminhos misteriosos para, no contato com a pensamento de cada época, iluminar aspectos novos da Revelação.
E aqui deixo uma pequena provocação ao papa emérito: por essa perspectiva, não seria o encontro da fé da Bíblia com a filosofia marxista na Teologia da Libertação igualmente um “encontro providencial”? Lutar contra a opção preferencial pelos pobres na América Latina não seria, portanto, como diria o rabi Gamaliel em Atos 5, 39, “lutar contra Deus”?
Uma teologia da escuridão
Por fim, é interessante destacar que a teologia de Bento XVI busca iluminar com a luz da razão e da fé as maiores incertezas da alma humana. E ele não tem medo de expor a profundidade da incerteza de nossa fé.
Em Auschwitz, no ano de 2006, o papa afirmou:
Quantas perguntas surgem neste lugar! Sobressai sempre de novo a pergunta: Onde estava Deus naqueles dias? Por que Ele silenciou? Como pôde tolerar este excesso de destruição, este triunfo do mal? (…) Nós não podemos perscrutar o segredo de Deus, vemos apenas fragmentos, e enganamo-nos se pretendemos eleger-nos a juízes de Deus e da história. Não defendemos, nesse caso, o homem, mas contribuiremos apenas para a sua destruição. Não em definitiva, devemos elevar um grito humilde mas insistente a Deus: Desperta! Não te esqueças da tua criatura, o homem!
Vejam que o papa não tirou da cartola alguma frase de auto ajuda, ao estilo “depois da tempestade vem a bonança”, ou declamou as pegadas na areia. Ele mergulha na dúvida, incorpora a dúvida em sua oração, e sua única resposta é um clamor para que Deus desperte.
Em Introdução ao Cristianismo ele inicia sua reflexão com uma imagem que já usamos em outro artigo:
Atado à cruz, mas a cruz não está presa a nada e está flutuando sobre o abismo. Dificilmente se encontraria uma imagem mais precisa e instigante para a situação do fiel cristão nos dias de hoje.
Essa experiência profunda da incerteza é que o move a um certo conservadorismo, especialmente em temas como a liturgia. O seu propósito é reservar um ponto seguro no qual os cristãos possam se apoiar em meio à incerteza da modernidade. Afirma Ratzinger no ensaio “Para que ainda ser cristão?”, em Dogma e Anúncio:
Hoje também aquele para para o qual a existência de Deus, o mundo da fé, se tornou escuro, praticamente deveria viver quasi Deus esset - viver como se Deus realmente existisse.
E isso é um aspecto que diferencia Bento XVI de seu antecessor, João Paulo II, e seu sucessor, Francisco. Ambos são homens de profunda vida espiritual, e extravazam sua mística em seu magistério. Em contraposição, Ratzinger é o intelectual racional que vaga no escuro da incerteza, e como estratégia de segurança vive “como se Deus realmente existisse”.
Esse ir e voltar da reflexão racional ao dogma de fé mais simples permeia toda a sua obra teológica. Como se se segurasse novamente e todo momento à cruz do náufrago que flutua sobre a incerteza. Por exemplo, no Prefácio do primeiro volume de Jesus de Nazaré, ele faz esse movimento desta forma:
Certamente que a hemenêutica cristológica, que vê em Jesus Cristo a chave do conjunto e a partir d’Ele aprende a compreender a Bíblia como uma unidade, pressupõe uma decisão de fé que não pode surgir de um método meramente histórico. Mas essa decisão da fé traz em si a razão - razão histórica - e permite ver a íntima unidade da Escritura e assim também compreender, de novo, cada uma das peças do caminho, sem lhe retirar a sua originalidade histórica.
Reconhecer em Jesus o Filho de Deus, o Messias enviado para nossa redenção, é uma decisão de fé. E, em sua reflexão racional, ele precisa o tempo todo retornar a essa decisão de fé, de viver como se Deus existisse, para assim iluminar sua reflexão racional histórica. Aquela dupla correlação entre fé e razão que aparece no diãlogo com Ratzinger é, em essência, o coração do método teológico que o move.
Encerro este artigo pedindo orações pelo papa emérito. Este momento crucial da vida de Joseph Ratzinger pode ser um chamado para uma nova leitura e reflexão sobre sua obra teológica. Se este artigo puder contribuir para isso, já me darei por satisfeito.