Missas afro brasileiras: a expressão contemporânea da espiritualidade negra
A história da relação da mística africana com o catolicismo é marcada pela tentativa de aproximação dos negros e sua rejeição pelos europeizantes
Hoje é 20 de novembro, dia da consciência negra. Em várias paróquias pelo Brasil serão celebradas as missas afro brasileiras, seguindo o missal romano, mas incorporando na música e nos paramentos a simbologia das culturas africanas, em especial a iorubá, mais presente entre os escravizados no Brasil.
São muito comuns, em vários grupos católicos, a crítica à missa afro, entendida como abuso litúrgico. Curiosamente, muitas dessas críticas vêm de pessoas que não se incomodam em participar das “missas de cura e libertação”, recheadas de simbologia neopentecostal e práticas que, para um olhar tradicionalista, beiram o sacrílego, como tocar ou mesmo se esfregar no ostensório.
Eu particularmente não vejo problema algum em tocar as mãos no ostensório ou ter atabaques acompanhando uma celebração litúrgica. Também não vejo problema em missas celebradas em latim, sei cantar de cor o Pange Lingua. São todas demonstrações de amor a Deus, cada uma a seu modo, e não podemos nos esquecer que o brasileiro, na média, é muito efusivo nas suas manifestações de carinho.
Mas refletir sobre a missa afro, especialmente quando o Dia da Consciência Negra cai no de Cristo Rei, é refletir, como fizemos no outro artigo, sobre como os preconceitos sociais e as opções políticas se manifestam na nossa vida espiritual. Aqui, no caso, como um suposto rigor litúrgico pode estar refletindo o mais puro racismo.
Racismo católico: a experiência das irmandades
Para isso, precisamos voltar alguns séculos para conhecer a experiência das irmandades negras. Até o começo do século XX, era nelas que se manifestava a espiritualidade do povo negro católico, promovendo devoções como a de São Benedito e Santa Efigênia. Várias igrejas foram construídas Brasil afora para esses santos, por essas irmandades, e muitas delas hoje são sedes paroquiais.
É importante frisar que no Brasil colônia, por conta da escassez de padres, todas as comunidades católicas se organizavam sob a forma de irmandades laicas. Foram elas que construíram a maior parte das igrejas, e as mantinham por meio de doações. Nas cidades, elas eram administradas pela elite de senhores de escravos. Por isso, era natural de os escravizados e libertos constituíssem as suas próprias irmandades.
Contudo, no final do século XIX, há uma mudança fundamental na estrutura da Igreja no Brasil. Com a proclamação da República, as dioceses deixam de ser tuteladas pelo Imperador, e passam a ser organizadas diretamente pela Santa Sé. Por este motivo, as dioceses passam a estruturar as Mitras Diocesanas como sua personalidade jurídica civil, e estas passam a incorporar o patrimônio das irmandades. As igrejas se tornam sedes paroquiais, e sua manutenção passa para o controle do clero.
Em muitos casos, isso representou uma maior liberdade do clero em relação às elites locais. Mas, para as Irmandades negras, foi um duro golpe. Várias foram fechadas e proibidas, ou então expulsas das suas paróquias. Os bispos, agora formados no Vaticano, defenbdiam um alinhamento cada vez maior das liturgias e da vida pastoral ao que se fazia em Roma.
O que hoje se considera “catolicismo tradicional” nada mais é do que o catolicismo do final do século XIX. Não é o dos apostolos, ou mesmo o do Concílio de Trento. É uma mistificação, e no caso brasileiro esta mistificação se deu no contexto da doutrina do embraquecimento do país, que previa eliminar os negros por meio da miscigenação e do combate às religiões de matriz africanas. Não havia, neste ambiente, espaço para uma espiritualidade negra.
A renascença do catolicismo negro
É nos anos 1970 que surge o canal pelo qual a Igreja Católica retomou a espiritualidade africana em suas fileiras. Na Teologia Latino Americana, resgata-se uma longa tradição nos processos de evangelização de novos povos, conhecida como “inculturação”. Exemplos desta prática é o trabalho dos jesuítas no Brasil, incorporando aspectos da religiosidade tupi na catequese, e na China, onde Matteo Ricci chegou a vestir os trajes do mandarinato e usar Confúcio em suas pregações.
No Brasil dos anos 1970, isso significava recuperar aspectos da espiritualidade indígena e africana na devoção católica. E isso passava pela liturgia, primeiro pela incorporação da percussão no hinário litúrgico. Em novembro de 1981, em Recife, Dom Helder Câmara celebra a Missa dos Quilombos. a primeira a incorporar aspectos simbólicos da cultura africana na liturgia.
Em 1988 a Campanha da Fraternidade relembra o centenário da abolição, e provoca uma reflexão sobre o lugar do negro da Igreja. Gabriel dos Santos Filho afirma em seu estudo sobre a Pastoral Afro que é nesta ocasião que surge o Instituto Mariama de Padres, Bispos e Diáconos Negros do Brasil, primeira iniciativa pastoral voltada à comunidade negra no país. A Pastoral Afro, contudo, só seria reconhecida pela CNBB em 2002.
Com a criação da Pastoral Afro, foi reconhecida legitimidade litúrgica das missas afro:
As celebrações afro-inculturadas não são mera folclorização litúrgica, ou seja, ritos e símbolos desvinculados da realidade. Ao contrário, é a da vida, da esperança e do clamor do povo negro sofrido e daqueles que padecem as mesmas penúrias. Portanto, as comunidades negras se recusam a fazer da liturgia espetáculos.
Os ataques à missa afro
Contudo, mesmo com o reconhecimento oficial, a missa afro é atacada como abuso litúrgico por parte de alguns. Geralmente, a crítica aparece junto com a negação do racismo estrutural brasileiro, inserida no argumento de que defender a identidade negra é promover a segregação. É o caso deste artigo de O Catequista (um pessoal bastante conhecido por ser razoável, é justo dizer):
Aqui no Brasil não existe escola afro, universidade afro, cinema afro, supermercado afro, shopping afro, parque de diversão afro... No máximo há salões de beleza afro, especializados em cabelos crespos. De resto, os costumes de brancos e negros em nada se diferenciam em nosso país. Até mesmo o Candomblé e Umbanda têm tantos adeptos negros quanto brancos. Então, qual a necessidade de promover missas "afro", se os negros aqui vivem integrados com os brancos? (grifo do texto original. Sim, eles mesmos colocaram isso em destaque)
Imagino que o autor deste texto não tem que se preocupar quando sai de casa com o risco de ser preso por engano apenas pela cor da pele. É representativa do racismo de quem escreveu este texto a própria negação da discriminação existente nas relações sociais que permeiam o Brasil.
Caso mais grave foi promovido por aquela organização com nome de título de renda fixa, o CDB (Centro Dom Bosco). Em 2019, uma falange fascista desta organização decidiu profanar uma celebração litúrgica na Paróquia Sagrado Coração de Jesus, na Glória, bairro do Rio de Janeiro. As pessoas que foram atrapalhar a celebração do santo sacrifício do altar chamam aos outros de profanadores, em um caso de dissonância cognitiva típico do fascismo.
Sabemos do que o grupo com nome de título de renda fixa é capaz: em 2022 eles profanaram a Basílica de Aparecida para celebrar o seu bezerro de ouro com eripsela, também conhecido como Jair Bolsonaro.
É contra isso que lutamos: a Igreja é lugar para todos os filhos de Deus, não para uma elite de fariseus hipócritas. Se ser discípulo de Jesus é dar testemunho do amor, o preconceito não pode ser tolerado nas naves de nossas igrejas.
Vá a uma missa afro hoje, dance, e seja feliz na comunhão do Senhor.
É muito simples mesmo: Vá à Missa hoje, bem preparado, comungue e seja feliz. Depois almoce alegremente com sua família, brinque com seus filhos e visite algum amigo doente e lhe arranque um sorriso. Tudo muito simples. Todo o resto que tentarem colocar dentro da sua cabeça é pura bullshitagem.